SONHO COR- DE- ROSA
Daisy Melo

Dá a ultima dentada na manga. Um fio escorre pelo canto da boca manchando o queixo de amarelo. Docinha, docinha. Chupa com cuidado o caroço, joga fora o que sobrou. Limpa a boca com as costas das mãos. Está toda melada. Lavar aonde? Esfrega na blusinha encardida. Pega as bolinhas verdes - é exímia malabarista -, a latinha de coca-cola que faz de cofrinho e se encaminha para a sua esquina. SUA esquina, bem falado. Já tinha se pegado com Dodô, menino mais velho que cismou de ficar ali e tirar a sua freguesia. Se deu bem: primeiro foi uma rasteira, ele caiu no chão de bunda. Aí subiu em cima dele e segurou a cintura do filho da puta com os joelhos e, como uma louca - parecia que tinha o diabo no corpo - sapecava tapas na cara, socos, cuspes e mordidas. Nem parecia uma menina. Dodô rapô fora. Nunca mais. Quando o encontra, de vez em quando, na rua, percebe um ódio que chega a arrepiar, um olhar duro. Mas ela, por mais que sinta medo, não abaixa a cabeça para não mostrar covardia porque nunca se sabe o que esses caras podem fazer.

Viver na rua é perigoso, mas pior é ficar em casa, com o pai bêbado, a madrasta batendo por qualquer coisa. Da mãe, não sabia, desapareceu no mundo quando ela tinha 3 anos. Se engraçou lá com o cara da companhia de gás que foi fazer um serviço na favela. Sumiu. Deu no pé. O pai arrumou logo outra porque homem é fácil de arrumar mulher. Tá assim de mulher querendo homem. Era pequena ainda mas já sabia das coisas. De qualquer jeito tinha casa. Se as coisas ficassem pesadas ou se a assistente social cismasse de ficar rondando por ali ela ia dar um tempo.

Esconde a ultima manga no meio das caixas de papelão atrás do depósito de móveis. Não podia esquecer porque o caminhão da COMLURB passa à noite para recolher o lixo. E aí, báu, báu... ia ficar sem janta. Anda pela Figueiredo de Magalhães, atravessa o Shopping Center e sai na Siqueira Campos. Desce a rua em direção à Av. Atlântica. Passa pela Igreja, escuta a música, sente vontade de entrar, mas desiste. Aquelas madames ficam tudo olhando de lado, torcendo o nariz com nojo. Babacas. Na Praça dos Paraíbas encontra Lucinha e Mazé que olham dois velhos jogando dominó. 

- Vou para praia, diz Mazé. Os meninos tão tudo lá tomando banho de mar.

Lucinha dá de ombros, prefere ficar ali e esperar a missa acabar para descolar um troco com as madames. Mas ela, Cyrlene, desiste da esquina, deixa as bolinhas e a latinha com Bigode, que guarda os carros dos bacanas e segue com Mazé que só tem 13 anos mas já está de barriga. Cyrlene tem doze mas ainda é moça. Não sabe porquê. Talvez por ser pequena e magrinha e não ter corpo de mulher feita. 

Continuam descendo pela Siqueira Campos em direção ao mar. Apesar de ser quase noite, a praia está lotada. Os bares da Atlântica, apinhados de gente tomando chopp, comendo lingüiça frita. O verão deixa a vida mais alegre. Cyrlene olha tudo, tanta coisa bonita, sente vontade de cantar. Deixa escapar a melodia, só um verso do funk mas Mazé solta uma gargalhada, implica: - voz de urubu. A menina pára, sem graça, a cantoria. 

O negão dos badulaques, alto e de óculos escuros passa vendendo bijuterias - Cabelo engraçado - pensa Cyrlene, observando interessada as trancinhas coloridas do cara, o chinelo de couro e a roupa de hippie, desbotada e rota. No restaurante, o gringo, louro e vermelho, devora um bife enorme com batatas fritas. Mazé pede um trocado. O homem olha para ela ressabiado, mas repara no shortinho vermelho, muito apertado e na camiseta branca pequena demais para o tamanho da barriga. Percebe os seios já grandes de leite, escapando pelo decote, sente pena, decide dar o dinheiro. Mas o babaca do garçom expulsa as duas dali.

- Filho da puta - Mazé cospe entre os dentes - você me paga, desgraçado. 

A brisa refresca o ar de repente. Cyrlene respira fundo se alimentando do cheiro do mar. Sente-se subitamente feliz como se fosse uma gaivota. É bom viver assim, na rua. Sem escola, sem mãe e pai para dar ordem. Mas nem tudo é bom. Da policia tem medo. O guarda da esquina da Copacabana com Hilário, sempre olha de um jeito oleoso para os peitos dela, para bunda. E sempre que pode a toca naquele lugar. É um toque que queima como ferro em brasa, que fica dias incomodando. Horrível. A menina sente como se estivessem apertando seu coração. Uma angústia, uma sensação de sujeira que não é de não tomar banho. E sujeira da alma. Ela não sabe explicar. O velho do prédio chique também toca nela lá. Mas ele Cyrlene não liga. É bonzinho e muito velho. Traz doce, paga sorvete, sanduíche do Mc Donald's e prometeu lhe dar no natal uma Barbie. Ela só não gosta do cheiro dele, de mofo como a casa dela, só que sem o feijão. 

Enquanto Mazé procura os meninos na praia. Cyrlene senta na areia e olha as ondas que batem com estrondo. A moça de rabo de cavalo e short de lycra rosa-choque passa correndo pela beira do mar. A menina pensa na Barbie que o velho vai lhe dar. Queria aquela que viu na vitrine das Lojas Americanas, de vestido de noiva, lindo, todo branco. Era loura, tinha uma grinalda de florzinha e o véu comprido. Queria tanto ter o cabelo igual o dela. Aí sim ia ser bonita. Mas o cabelo da menina, preto e ondulado, maltratado e embaraçado de sujeira, nunca vai ficar que nem o da boneca. Só se ela colocasse aquele líquido branco e ficasse com os fios claros igual o do Macarrão, namorado de Lucinha. Ele pintou o cabelo e ficou lindão. 

Um cachorro grande fuça por perto, cheira a menina, lambe sua mão com gosto de fruta. Cyrlene sente medo mas ri. - Astor!- grita o dono. O cachorro sai em disparada levantando uma nuvem de areia. 

Cyrlene pensa no vestido cor-de-rosa que viu no Rio Sul. Se usasse um vestido desses teria namorado e de repente até pegaria barriga que nem Mazé. 

O homem com um fogareiro passa vendendo queijo coalho. Um cheiro bom de queijo torrado. Cyrlene sente fome e lembra da manga escondida nas caixas de papelão.

A tarde cai e as ondas ficam mais calmas, quebrando devagar. Estrelas mínimas começam a acender uma a uma como se obedecessem a um comando invisível de interruptor de luz. Logo vão piscar, iluminando a água escura. A noite de Copacabana acorda pouco a pouco, mas Cyrlene não repara em nada disso. Não ouve as buzinas nem a musica do radinho de pilha do rapaz magrelo que passa por detrás. Nem percebe a algazarra dos meninos zoando com a barriga de Mazé. Misturado aos sons da noite ela só vê a sua Barbie de vestido de noiva. É natal e ela se veste de cor-de-rosa. Está linda e totalmente feliz. 

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