BABY NOEL
Eduardo Prearo

As grandes obras, vivas 
em todas as suas partes,
serão afinal somente
aquelas que foram
feitas com os materiais da
própria época e do próprio 
meio. Tudo quando fizerdes 
com material de outros tempos,
seja reconstrução, seja ante-
cipação, não passa de ensaio.

Joaquim Nabuco

No último Natal, na véspera, fiquei andando por aí sob granizo. Fiquei em alguma esquina esperando a chuva passar até quase meia-noite. Acabara de ter aparecido na TV porque fazia parte de um coral evangélico. Havia deixado meus sapatos numa janela, numa janela interna, suspensos pelo velho cadarço. Houve alguma vez na infância em que acreditei em Papai Noel? Que eu me lembre, não; jamais acreditei nele. Mas agora, depois dos trinta, passei a crer. Mas passou a crer por quê?, perguntariam-me alguns, talvez os mais céticos. Porque naquela noite, naquela longa noite, as renas desceram do céu junto com São Nicolau, que deixando um presente na porta, recusou-se a entrar. Éhhh, ainda não tenho casarão, muito menos uma que tenha chaminé. Mas deixando esse tradicionalismo de lado, o de ter chaminé, o fato é que Baby Noel, se assim ele me permite chamá-lo, deixou-me um lindo embrulho. Não, realmente eu não estava disposto a abrir aquela caixa enorme, embrulhada num papel dourado e enfeitada com uma fita azul-turquesa. Eu, eu, eu mesmo, não nós porque não sou oráculo. Aparecer na TV me deixara atordoado. Porém não exatamente isso, o aparecer, trouxera-me incomoda vertigem; e sim o fato do celular ter vibrado justamente na hora do Joy of Man's Desire, minha música predileta. Quem poderia ser, meu Superior? Atendi a ligação, mas a cantoria estava alta, não deu pra ouvir quem estava do outro lado. Pensei em atender em outro lugar, mas minha beca estava enroscada nalguma coisa. E o celular não permitia que eu soubesse o número de quem ligou por falta de crédito. Disse a mim mesmo, então: ah, vou passar este Natal na maior solidão, e o que é pior, infeliz, mais até que a população. Alguém me viu na TV e me ligou, com certeza fora isso. Fiquei tristonho, é claro, e até esqueci de me trocar; saí pelas ruas de beca mesmo. Foi quando entrei no ônibus e percebi o quanto estava ridículo e assustador. Agora, a enorme caixa estava ali na minha frente e eu estava firmemente decidido a abrí-la somente no ano que vinha. Que presente eu, um pobre mortal, mereceria ganhar?

Fui dormir. A manhã devia ter sido linda, mas eu nunca soube; acordei pontualmente ao meio-dia. Abri o embrulho, mudei de idéia. E não é que deparei-me com um gato? Como isto não havia miado antes! Estava ali, todo esse tempo, sem oxigênio. E agora o leitinho, a limpeza das merdas, as vacinas? Teria de voltar a comprar leite; todos esses anos sem tomar uma gota sequer; nem mesmo bolacha eu comia porque diziam conter leite. O cecular vibrou, eu jamais o tiro do bolso; era Priscilla.

— Está convidado para um luau. Iremos em cinco e sairemos da Ponte Orca amanhã de manhã. Combinado?

— Para um luau? É que o Papai Noel me deu um gatinho de presente. E estou achando que é fêmea. Ele veio trazer a bichana junto com suas renas...e o trenó era iluminado.

— Ele é simpático de perto, Rodolfo?

— Papai Noel? Éhhh, é sim. Ele nem quis entrar, estava com tanta pressa!

— Rodolfo, Rodolfo, Rodolfo, escute-me. Vá a um médico, você não está bem, cara. Você ficou louco, é?

— Alô, alô? Priscilla? Priscilla?

Batizei a gatinha: Priscilla! Dizem que é uma estupidez pôr nome de gente em animal, que é melhor pôr de peixe. Mas hoje em dia, tanta coisa é estupidez! Eu estava finalmente feliz por ter Priscilla; os gatos são símbolos de liberdade. Resolvi sair naquela tarde de Natal, e algumas pessoas me reconheciam na rua, perguntavam meu nome. Disse-lhes que eu não tinha pseudônimo, que meu nome era Rodolfo, Rodolfo Telles da Silva Pinto. Meu nome artístico era meu próprio nome, mas não, não quis pensar nas conseqüências disso. Pensar é sofrer. Fui ao cinema assistir Greta Garbo; voltara à moda os filmes antigos, agora coloridos com a mais alta tecnologia. Dama das Camélias, Dama do colchão de molas, tantas damas...Eu não tinha o direito de me irritar com os estalos de abertura daquelas latinhas de refrigerante ou latinhas contendo alcoóis, ou melhor, cerveja ou vinho. Talvez porque meu mastigar fosse sonoro, o mastigar pipoca, o alimento mais solar. O ano passara tão lentamente, pensava eu enquanto assistia o filme. O ano, que ano! Lembrei-me de um ditado que diz que se lutamos é porque temos esperança. Sim, eu tinha uma vaga esperança, mas a vida naquele momento me bastava...me bastava.

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