AMOR... MEU GRANDE AMOR...
Ly Sabas

Certas estórias, mesmo que contadas por pessoas em quem confiamos, possuem um certo cheiro inverossímil. Foi isso o que senti quando conheci a novela particular de minha amiga. Estávamos na varanda olhando o mar, ela na poltrona de junco e eu nos degraus de madeira da escada. Depois de suspirar confidenciou:

— Poderia ter sido feliz ... em um determinado momento de minha vida, vi o trem do destino se aproximar e não embarquei. Sei que não queria viajar sozinha e quem desejava para acompanhante também deixou o trem se afastar.

Da posição em que me encontrava podia ver seus olhos brilhando de nostalgia. Sabia de sua infelicidade conjugal, porém, nunca havíamos trocado confidências sobre seu passado. 

— Conheci o Amor... segurei, apalpei, cheirei, degustei o Amor... como fruta... como o ar que respirava. — enquanto falava, ia se abraçando e escorregando as mãos pelo corpo como se quisesse se aninhar no colo de alguém.

— Engraçado que não senti nada quando fiquei frente a frente pela primeira vez com Meu Amor. Eu já trabalhava na loja de sua irmã, mas não o conhecia. Um dia apareceu de surpresa, com um cunhado, para o dia das mães. Foi entrando loja adentro todo eufórico, quando me viu ficou parado, com um jeito perdido. Ela ria, abraçava e perguntava como veio e queria saber da família, tudo ao mesmo tempo. Você já notou como todos parecemos patéticos nos reencontros?

Jogou a cabeça para trás e, com o movimento, deu uma leve batida no encosto. Ficou por uns segundos esfregando a nuca e pensei que tivesse desistido de contar. Peguei um graveto e comecei a rabiscar na areia macia entre a escada e o canteiro de gerânios. 

— Dá para imaginar a irmã querendo passear com eles e, ao mesmo tempo, enfrentar o movimento da loja?
Fazia perguntas e nem esperava pelas respostas. Fiquei com a sensação de que minha presença era mera figuração. Vi, com o canto dos olhos, um camaleão saindo de entre as samambaias e cochichei em pensamento: "Mude de direção queridinho. Morro de medo de você". O danadinho continuou seu passeio sem sequer me olhar.

— ...que eu levaria os dois para conhecer a cidade. — quase pulei dando-me conta de que tinha perdido alguma coisa. — Sabe como é, essa coisa de pontos turísticos, incluindo o litoral. E lá fui eu perambular com eles, durante cinco dias. Eu devia estar com minha sensibilidade muito em baixa porque, não notei nada na maneira como me tratava. — essa parte foi contada rapidamente como se não fosse importante — Quando foram embora, eu tinha sempre a impressão de que havia perdido alguma coisa.

— Ele morava muito longe? — arrisquei perguntar sem mesmo saber se seria ouvida. Fiquei feliz ao receber um sorriso em troca.

— Longe... milhões de quilômetros... longe. — continuou dando um timbre mais forte a voz — Pouco tempo depois minha amiga fechou a loja e resolveu levar as mercadorias que sobraram para a cidade da família e vender por lá. Imagina minha surpresa quando fui convidada para ir junto. Adorei a expectativa de ficar um pouco longe de casa e de todos os meus problemas. Foi uma viagem tremendamente cansativa. — deu uma risadinha marota — Quando desci do ônibus fui recebida com um beijo na testa por ele, que nos esperava todo animado. Notei alguma coisa no ar que no fundo me incomodou. Fomos direto para sua casa e conheci a mulher e os filhos. Um casal. — notei aqui um falar nervoso, meio arrancado, como se não quisesse essas pessoas em sua estória. - À tarde, durante um passeio pela cidade com mais duas pessoas, deu um jeito de ficarmos sozinhos e, de repente, vi-me sentada num barzinho, tomando um chopp com alguém praticamente desconhecido, dizendo que estava encantado por mim.

Parou de falar, esticou as pernas e ficou balançando-as por um longo tempo. Levantei do chão e sentei em um banquinho procurando manter seus olhos em meu campo de visão.

— Não sabia como agir, que respostas dar. — levantou-se e deu algumas voltas pela varanda - Fazia um calor infernal, o que colaborava para aumentar meu suor nervoso. Eu sentia a roupa toda colada no corpo. Ele também suava muito. Pedi para irmos embora e voltamos para o carro.

— Tão simples assim? — tornei a arriscar, rezando em pensamento para que voltasse à cadeira. Parecia visceral que eu controlasse as reações de seu olhar. Fez um gesto com a mão e continuou, como se eu não tivesse perguntado nada.

— No caminho, sem mais nem menos, disse que queria tomar um banho. Não atinei de imediato como faria isto, até vê-lo embicar o carro para um motel. Meu sentimento de pânico aumentou, como se fosse possível esticar mais um centímetro meus nervos em frangalhos. É preciso que lhe confesse — no meio da frase, para minha satisfação, voltou a sentar e olhou diretamente para mim — que depois disso, durante anos, meus nervos provaram serem de circo! — rimos as duas, mas rapidamente voltou a ficar tensa.

— Disse-lhe que isso era inaceitável, que não queria... nem sei mais o que falei... tudo o que já tinha visto em filmes e novelas passou velozmente por minha cabeça confusa. Sem dar atenção, foi falando que só queria realmente tomar um banho, sentar calmamente em um ambiente refrigerado e conversar. Entramos no quarto e eu sem saber como me portar sentia arrepios de uma adolescente que mentiu para os pais. Antes que tivesse tempo de esboçar alguma atitude, foi logo servindo uma bebida para cada um e entrando no banheiro. Fiquei perambulando pelo quarto feito gato enjaulado. Ao mesmo tempo em que tentava arquitetar uma salvação, ardia de curiosidade. Não possuía bagagem emocional para avaliar minhas reações. "O que ele vai fazer?" ficava repetindo mentalmente, com a exata sensação de que as palavras borbulhavam por meus poros e escoriam corpo abaixo, tornando a borbulhar...! Coisa de louco. Exatamente isso... coisa de louco! — fez uma pequena pausa e respirou profundamente como buscando equilíbrio.

— Quando o vi saindo do banheiro com a toalha enrolada na cintura, tratei de correr para lá. Juro que nem tomei conhecimento do frescor da água e, com isso, ela não serviu para relaxar. Vesti minha roupa suada com a dignidade de um náufrago e fui para o quarto. Ele estava sentado calmamente na cama e achei mais seguro sentar no chão. "Se der o bote fujo", pensei na defensiva. Em vez disso disse-me, num jeito todo meigo, que agora sei ser bem seu, que tinha sonhado comigo antes de conhecer-me. Embora nervosa, senti vontade de rir. Continuou dizendo que a mulher do sonho seria a da vida dele e que, quando me viu na loja, levou um choque. Enquanto falava sobre seus sonhos e sentimentos, minhas amarras foram se desfazendo, as lágrimas descendo calmamente e hoje nem sei dizer quem fez o primeiro movimento. Tudo o que consigo lembrar é o turbilhão de emoções que emanavam de sua boca e mãos e, da pressa desenfreada com que fizemos amor. 

Terminou a frase baixinho, com um movimento torcido de corpo, como se agonizasse com as recordações e vi, com certa apreensão, seus olhos brilharem com a formação das lágrimas. Limpando o rosto com as costas das mãos, continuou aos arrancos.

—Voltamos para sua casa pisando em nuvens e, alternadamente em ovos. A família tinha feito um churrasco enquanto nos esperava. Não davam sinal algum de terem notado nossa demora. Enquanto comíamos, fui servida o tempo todo por Meu Amor e fiquei morrendo de medo de que alguém notasse alguma coisa. Olhava sua mulher e filhos e a imagem de meu próprio marido e filha mordia meu cérebro, em picadas que iam do remorso a vergonha. 

— Não ficamos mais sozinhos nenhuma vez e a única atitude que tomamos foi à promessa de nos escrevermos. Durante o retorno para minha cidade, tomei a decisão de acabar com meu casamento, já pobre há muito tempo de qualquer entusiasmo. Conversei com meu marido sobre minha insatisfação sem falar na traição. 

— E sua família? Como reagiram? — mais uma vez atrevia-me a formular perguntas, embora continuasse achando que nem me ouvia.

Balançou a cabeça e se deixou ficar olhando o sol que, mergulhado nas ondas, provocava um rastro vermelho que parecia terminar no jardim.

— O que significa para você o amor? — sem dar-me tempo algum de responder, disparou como uma metralhadora — E família? E honra? E direitos e deveres? — sentia a cabeça rodar. — Eu mesma nunca cheguei a um acordo com minhas opiniões. Levei dias e meses tentando entender. Houve horas em que gritei para as paredes todo o amor represado e todo o direito que acreditava ter, de merecer esse amor. Queria com gana de leoa dilacerar todas as amarras... queria com asas de águia voar até os braços de Meu Amor... queria como tempestade lavar todos os erros ... queria... ah! como eu queria.

— Como sua família reagiu ao pedido de separação? — repeti a pergunta e, inconscientemente, cruzei os dedos.

— Ah, eles? Acharam uma grande bobagem! Nunca tinham notado nada de errado em nosso casamento. — sorri mentalmente e prometi sempre cruzar os dedos. — Continuei escrevendo para ele e esperando as respostas em um misto de euforia e pânico. Naquelas linhas, cada dia mais carregadas de paixão, desnudamos nossas almas e intimidades com mais cumplicidade do que um ato sexual. — escorregou no assento e apoiando a cabeça no encosto deu um suspiro dorido.

— Vamos caminhar? — convidei sabendo que andando não poderia controlar suas reações pelo olhar. Queria libertar-me dessa necessidade nervosa.
Levantamos e senti um enorme prazer ao afundar os dedos na areia ainda morna do jardim. Atravessamos por entre os canteiros a saímos andando pela praia. Durante esse curto percurso nada foi dito. Comecei a achar que a caminhada não tinha sido uma boa idéia, até que, segurando em meu braço e obrigando-me com esse gesto a parar, falou com os olhos brilhando:

— Foi aqui! Foi nessas areias que fizemos amor pela segunda vez! — novamente seu olhar era primordial — Chegou um momento em que só carinho por escrito nos sufocava e num ato aventureiro, marcamos um encontro aqui e nos deixamos vagar por entre lençóis, areia e água durante uma semana. Nunca procuramos saber a desculpa que cada um tinha dado em casa.

— Por que não resolveram logo de uma vez ficarem juntos e fim de papo? — mal terminei de falar e dei-me conta da bobagem simplista da pergunta.

— Agora não sei mais... já se passaram dez anos! — praticamente desabou na areia e, abraçando as pernas, escondeu o rosto nos joelhos para chorar. Sentei-me ao seu lado, abracei-a e esperei calmamente que os soluços parassem de sacudir seus ombros.

Com amigos comuns tentei preencher as lacunas e encaixar as peças, já que não tocamos mais no assunto desde esse dia. Fiquei sabendo que a irmã dele sempre soube de tudo e foi em sua casa, em outra visita, que ele conheceu a filha e o marido dela. Mas foi essa mesma irmã a causadora da separação. Essa parte é muito nebulosa, ninguém soube explicar-me o que aconteceu de verdade. Segundo um amigo íntimo, ela dizia que sua memória tinha se recusado a registrar mais uma derrota. Que suas sensações eram vagas a respeito do momento em que viu ruir a confiança, a cumplicidade e o carinho existente entre elas. Foi a partir daí que começaram a rolar os tais dez anos. Por incrível que pareça dele só sabia o nome, a cidade e um número de caixa postal que não era mais usado. Eu, particularmente, sempre acreditei que amor se esquece, acaba. Mentira pura. Fica adormecido e, quando resolve se espreguiçar, não há coração que consiga conter seus movimentos.

Certo dia entrou correndo porta adentro.

— Descobri que a Embratel pode achar Meu Amor!!! — dava pulinhos, rodopiava em volta da sala e novamente peguei-me vasculhando seu olhar. E o que vi deixou-me apreensiva. Era esperança com uma mescla de covardia. — Basta dar o nome dele e a cidade. Simples assim!!!

— Então vamos tentar agora. — ficou olhando-me e vi a covardia suplantando a esperança de um modo tão atroz, que corri e abracei-a. — Deixe-me ligar para você. 

Essa tentativa foi repetida por duas vezes, com um intervalo de três meses entre cada uma delas. Ou ele não morava mais lá ou não tinha telefone. Perto do Natal, minha amiga resolveu que forçaria um retrocesso do trem do destino, que estaria na plataforma e, segurando bem firme na mão do seu Amor, embarcaria para o que esperava fosse a Felicidade. Tomada a decisão, como num passe de mágica, a Embratel apareceu com o número. Mais uma vez a covardia mesclou-se com a esperança e passamos por várias ameaças de ligações. Tinha verdadeiro pavor de não ser lembrada. Dizia que estava velha, com diversos quilos a mais e com outra cor de cabelo. Jamais imaginava que os mesmos anos haviam passado também por ele. Um belo dia desapareceu e passei uma semana em cólicas, sem sequer ter coragem de formular um pensamento. 

Quando vi minha amiga novamente, não consegui entender a mensagem de seu olhar. Era uma gama de sentimentos desencontrados. Ficava dias inteiros muda, para depois alternar com outros em que só falava na filha. Dei-me conta de que o marido não fazia parte dessas reminiscências. Perguntava-me em que escaninho teria ela escondido o que um dia sentira por ele. 

Resolvi que daria para ela seu Amor de presente de Ano Novo. Queria ver a tranqüilidade em seu olhar. Percebi, de repente, que seus sorrisos não passavam dos lábios. Impus-me a obrigação de virar a mesa e uma noite enquanto monologava distraída, cheia de incertezas, peguei o telefone e disquei o número que já tinha decorado. Esperei com a pulsação na garganta. Foram três toques. Uma voz melodiosa atendeu e, sem dizer nada, passei o fone para ela. Seus olhos se arregalaram e eu mergulhei neles, querendo captar o brotar da felicidade.

— Amor... Meu grande Amor...

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