PELO CHEIRO
Olívia

 

Era julho. O dia se fazia bonito, de um sol que sorria e dizia "sim, seja!". Ventava.

Ela pôs seu casaco carmim, pintou de vermelho-rubi seus lábios ávidos, e os cabelos curtos espalharam-se, despenteando-se como quase sempre.

Saiu na manhã, sem norte. Acabou dando na ruazinha florida e tranquila e entrou no sebo antigo, tentada pelo cheiro sépia que lhe vinha.

E de repente, tomava vodcas na Rússia, ao lado de beatas ensimesmadas e bêbados felizes-felizes, em uma tapera na noite que uivava. Fria. Dançara uma bela polca, em seus desajeitados passos, em todo o seu descompassado ritmar.

E no instante em que virou o corpo tomado pela dança, estava já num salão belíssimo, vestida num longo verde-escuro, que fazia par com seus olhos *"verde-pensamento". Bebericava gostoso em taça exótica e a bebida salmão lhe fazia cócegas no corpo. Tomada de alegria incomum, ela dançou com o cavalheiro de preto, que trazia na boca carnuda uma gorda rosa vermelha, e delicadamente enfeitou seu cabelo, que agora era longo e envolto em pedras pequenas e também verdes. Dançaram a dança dos corpos, e ela acordou úmida, debaixo de chuva fina em terra de ninguém.

Chorava de solidão e exalava cheiro fétido de quem há muito padece e anseia por milagres.

E quando enxugou os olhos, era uma ladie e costurava maquiavelicamente um plano feio junto a seu parceiro. Vivia num castelo árido, bem como sua alma.

Da gargalhada malévola partiu para o grito de dor, e paria debaixo de sol quente e uma pobreza em carne viva, cinco rebentos. E o choro agudo transformou-se em violinos. E ela era então regente de linda orquestra, e um perfume adocicado pairava no ar, como se este exalasse das cordas dos instrumentos.

Quando tudo era silêncio, ela era luar, e flertava com os amantes de Veneza que inspiravam poesia e paixão rubra.

E então uma mariposa colorida pousou na página velha.

Ela se espreguiçou e pôs de volta a pilha de livros que havia folheado durante horas a fio. O dia lá fora ainda era bonito, e o sol baixinho ainda lhe sorria, mas desta vez com uma satisfação doce de quem acaba de presenciar algo estupendo. A mariposa desapareceu no azul do céu, enquanto a moça de carmim voltava pela ruazinha florida, sorrindo leve. Estava ainda embriagada pelo tanto que acabara de (vi)ver. Profundamente.


*Expressão de Guimarães Rosa, em "A menina de lá".

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