CAIXA DE PANDORA
Neuza Paranhos

Foi dançarina, dessas que chutam a sapatilha e o corpo de baile. O tempo a abraçava, os músculos azeitados e condizentes da pouca idade. Oscilava entre dança e teatro - queria roteiro dramático, ensaiava virar atriz. Passados uns vinte anos, durante um bate-papo, descobrimos uma peça de teatro em comum. Uma que mexeu com nossas vidas. Ela do lado de lá, no palco, eu na platéia – não nos conhecíamos, então. Estava escalada para o elenco de “Lulu, a Caixa de Pandora”, de Frank Wedekind, em uma montagem da diretora e coreógrafa Carmem Paternostro, levada em Belo Horizonte e São Paulo em 1985. Mas antes que pudesse participar de um único ensaio, aconteceu. Percorria São Paulo fazendo e acontecendo de moto. Daí, crás! E ei-la tetraplégica.

Leda me descreveu os horrores dos primeiros tempos se adaptando à condição de tetraplégica - ou aleijada, como ela mesma dizia despachada, traindo a amargura. Antes disso, houve um período em que ficou prostrada, sem reagir. Recebendo visitas e cari nho da namorada, que a Leda era gay. Tetraplégica, gay, atriz, dançarina. E nos últimos anos, estudante de Filosofia da USP, coisa que ela vivia ameaçando largar por causa da dor, a tal que ela sentia e nenhum analgésico, nenhuma tecnologia conseguia aplacar.

Um dia, lá pra 1996 ou 97, telefonei pra Leda e marquei um encontro. Tinha a idéia de escrever sua história. Passei umas cinco horas ouvindo quieta enquanto ela falava, falava, falava. Sumi do mapa, a Leda falava demais. Sofria de energia acumulada, acho. O corpo entranhado na cadeira de rodas. E ela tinha carro, desses especiais para "aleijado", com que percorria a cidade. E gostava de parar no MacDonald's em dia de promoção de cheeseburger. A Leda telefonou várias vezes perguntando em que pé andava o projeto, e eu sem coragem de dizer que não havia nenhum projeto. Até que desistiu. Anos depois, reafinamos a amizade graças a amigos em comum. Sabem como é. Você é amigo de Zé, que é amigo de Mané, então via Zé voc ê acaba encontrando Mané. Era mais ou menos isso. Mas sempre dei um jeito de escapar da Ledinha, porque muitas vezes a ocasião pedia. Sou lenta, contemplativa, e a ela me cutucava o tempo todo, energética. Eu soprava minhas bolas de sabão e ela: "Como assim, gata, me explica essa história direito". Me queimava com par de olhinhos pretos. Feito um núcleo de átomo prestes a ser desagregado. E provocar um estrago tamanho. Havia raiva e energia acumulada no corpo massacrado da Leda.

Tínhamos amigos em comum, foi isso. Tanto que, por mais de uma vez, folguei na casa dela, em Ubatuba. E chegamos a viajar juntas em bizarras composições de gentes: eu, Ledinha e dois moleques de 20 anos (o afilhado dela e o amigo). Ficava uma coisa gozada, os sobrinhos pedindo o carro emprestado, nós duas tendo que explicar pros tontolões onde ficava o centrinho de Ubatuba, lugar bom pra ganhar "as mina". Essa composição devia ser predestinada, porque calhou por mais de uma vez sem que ela - e muito menos eu - tivéssemos planejado. Primeiro em Floripa, em janeiro de 2001. Depois em Ubatuba, em 2002. Nas duas vezes liguei o botãozinho da paciência e pude desfrutar tudo de bom que a companhia da Leda também tinha a oferecer. O humor, o interesse em aprender tudo, a camaradagem, a figurice. Mas em umas horas ela ficava chata - fazer o quê? Nesses momentos de gastura eu escapava. Lembro a vez em que dei sumisso em Floripa. Fui a uma praia que não tinha acesso por carro. Para ir até lá tinha que pegar uma trilha nas pedras. Por isso, sería improvável a Leda aparecer. Pois estava eu sob o guarda-sol, uma edição de “As Mil e Uma Noites” em uma mão, capirinha de maracujá na outra. E não é que ela surgiu pela orla, a cadeira-de-rodas levada pelos garotos como se fosse uma liteira. "Te achei, gata!", comemorou.

Havia algum tipo de explosão nos rondando. Em Ubatuba, outra ocasião, eu, Leda, Carla Samantha e Beto. Garoava, soprava um vento friozinho no começo de prima vera. Nada a fazer, tédio bom de praia com chuva. Chegamos logo após o feriado de Sete de Setembro e a cidade estava com aquele ar pós-hecatombe dos balneários paulistanos depois que a turistada sobe a serra. Ainda mais com o céu cor de chumbo, invocado. Tinha um prédio nas Toninhas, perto da casa da Leda, que pendia acentuadamente para um lado graças à fundação vagabunda. Eu e Carla Samantha, tortas de caipirinha, ficávamos olhando aquela Torre de Piza tapuia sobre fundo cinza. Nas janelas, uns malucos que insistiam no mito do apartamento na praia. No caminho ficava a vendinha onde íamos abastecer: Ypioca, limões, azeite, batatas, arroz, papel-higiênico, Nescau... Quase sempre não tinha - os turistas consomem a alma da cidade antes de caírem fora. E o prédio provocava vertigem. Imaginávamos a composição da mobília: cama, televisão, poltrona, tudo encostado de um lado... Essa vida flutuante estava com as horas contadas. A idéia era encerrar o capítulo em Ubatuba no dia segui nte. Como saideira, pensamos em um almoço fenomenal, desses de lamber os beiços. Fomos comprar peixe e camarões. Sei que acendemos o baseado no carro porque eu estava bem louquinha quando chegamos na peixaria e assitimos a uma viatura policial surgir do nada e dar geral em uma dupla de garotos, a poucos metros de onde estávamos. A violência com que os tiras abordaram os meninos nos deixou meio ressabiados. Mesmo assim, prosseguimos e, quando chegamos ao Aquário de Ubatuba, já havíamos esquecido o episódio.

Pouco lembro dos momentos passeando pelas salas escuras. Havia mais ninguém além de nós e os bichos coloridos no circuito pelo qual seguíamos. Eu ia flutuando entre os espécimes. Perto do fim, um lugar claro, uma piscina a céu aberto. Ledinha e Carla Samantha ouviam um menino que trabalhava no aquário. Ele falava alto demais para alguém que estivesse discorrendo sobre fauna marinha. Fui sintonizando a voz aos poucos. Descrevia uma ficção barata de juízo final. Desse s roteiros vagabundos que os gringos produzem e o mundo inteiro engole. Um avião se chocando contra o Empire State... Saímos meio zonzos, impotentes frente à garoa e o céu de chumbo. Começamos a andar rápido no centro de Ubatuba, quase ninguém na rua. Íamos mudos, determinados - por que será que andávamos tanto? A Leda falava por nós quatro. Íamos aflitos a procura de um bar com televisão ligada. Achamos. Samantha entrou no recinto empurrando a cadeira-de-rodas. Não era o Empire State. Eu, que nunca tinha ido a Nova York, passava batido na existência das "Torres Gêmeas". A tevê mostrava imagens de uma delas sendo atingida.

Saí do bar empurrando a cadeira-de-rodas. Samantha e Beto acabaram se distanciando de nós. Por que retomamos a caminhada nervosa, no centro de Ubatuba? Sei que entramos em outro bar com tevê ligada para checar os rumores: outro avião se chocando contra a outra torre. Impossível! Confirmado. Lá em cima, mais quatro aviões prontos para o alvo, diziam. Não havia esperança, retomamos a caminhada. Leda vociferava a vontade de estar em um dos aviões, festejava o desafio ao império americano, gabava não ter medo de morrer. Eu atrás, empurrando a cadeira-de-rodas. Beto e Carla Samantha iam longe. No carro, Leda continuava dizendo: não tinha nada a perder. Acho que Samantha fez com que ela parasse. Estávamos todos com medo, menos a Leda. Ela aceitou - embora sem entender muito bem nossa reação - que embrulhássemos peixe e camarões para viagem. E começássemos a preparar imediatamente a volta para São Paulo, inclusive Samantha, que tinha desistido de seguir pela BR 101 até Ilha Grande - não tinha mais vontade de sair de férias.

Dia seguinte, com mais calma, ponderamos que, talvez, nossa reação tivesse sido exagerada. Carla Samantha foi cedo para a rodovíária e pegou ônibus para o Rio. Beto começou um novo trabalho. E eu acompanhava a CNN pela internet a cada meia-hora para saber mais notícias - quando criança eu assistia t evê para saber sobre o fim do mundo e a guerra do Vietnã. Lembrei disso e fiquei com medo de ter nascido com a finalidade de testemunhar o final dos tempos. Liguei para Carla Samantha no celular e perguntei se poderia me mudar pra casa dela com meus inúmeros gatos e cachorros, caso a catástrofe se abatesse sobre nós. Depois, saí do choque e parei de pensar bobagens. Leda continuou a mesma ladainha, de que gostaria de estar em um daqueles aviões. O problema dela não era o império americano. E sim a raiva doendo o corpo, a energia acumulada, uma solidão medonha sem companhia que bastasse. Ninguém calculava a dor que ela tinha por dentro. Em fevereiro de 2003 Leda explodiu, finalmente, por conta própria.

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