UM DIA, UMA VIDA
Bruno Pessa

Os goles de leite apenas molharam a garganta e aliviaram o estômago sedento pela nutrição da primeira parte da jornada mais uma vez iniciada com sono no chegar da claridade me acordando do descanso infatigante da troca dos dias. Estou cansado. Antes da faculdade faço a lição de casa numa escola propondo levar algum conhecimento para além da bolha universitária derrapante no seu compromisso de estender seus saberes àqueles que a sustentam. Estou animado.

O primeiro ônibus me fez correr na luta de sempre contra as horas e o segundo me deixou esperando intermináveis minutos na certeza agonizante de que o tempo é um encardido adversário e limitador de mais um dia da minha passagem. Estou irritado. Um e quarenta e cinco sacados na catraca não tornariam o trajeto agradável não fosse um descontraído papo e a perspectiva de colaborar com uma colega na confecção de um trabalho que vale o esforço somente pelo sorriso exibido ao seu lado. Estou completo.

O barato almoço caseiro é simples o suficiente para eu não me distrair enquanto passa o telejornal com os gols da rodada antes de uma breve pausa de sono no sofá e a carona que me isenta dos um e quarenta e cinco. Estou vibrando. Hoje substituí a aula por um seminário de filosofia que tem de vencer o sono vespertino para aos poucos nos revelar nossas fragilidades diante do fechamento do universo da locução da sociedade unidimensional manipuladora de vontades. Estou chateado.

O lanche do fim de tarde acaba dividindo minha atenção com trechos de um livro e preocupações de um projeto que custa a deslanchar por tantas indefinições até eu decidir para eu mesmo fechar os olhos sobre alguma tese na biblioteca. Quinze minutos depois tenho uma daquelas aulas de produtividade mínima só valendo a lista de presença porque o cara lá da frente é doutor e o caramba mas nada nos acrescenta de útil nem nos permite concluir que adiantará arrumar briga. Estou esgotado e revoltado.

A chegada finalmente em casa pressupõe um banho esperado antecedendo a fruta e os telefonemas relaxantes que repassam o dia no tapete da sala diante do futebol na TV. Estou novo de novo. Acabando o jogo começa a festinha de república que é o ponto alto da congregação interativa entre os convidados muito embora ninguém tenha chamado o lazarento do meu sono para ir minando a curtição do meu barato. Voltando pra casa, revejo, junto com meu sono, mais um capítulo torrencial da minha atual existência. Algum dia talvez eu deixe esta vida, mas vou sentir saudades.

 

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