HÓSPEDE ESTRANHO
Carlos Alberto Francovig Filho

Longe a inocência. Na meia idade, seguro do caminho da vida e num suspiro profundo com trago de memória, freneticamente chega o sentido cru; experimento dos calos que as horas fazem.

Naqueles tenros 10 anos, meiga era a tarde de primavera e no Colégio Machado de Assis a professora, cujo nome me sumiu há um bocado de tempo, de peitos grandes e avolumados, deixou-nos livres. "Tempo livre de artista", dizia ela. Meus olhos debruçavam-se nas duas montanhas de carne e se surpreendiam por não encontrar arbustos; apenas o mesmo guarda-pó de todos os dias de aula. Dei início ao bordado de flores num lenço branco de cambraia.

Graúda concentração nos borrões coloridos sobre o branco do tecido que segurei durante toda pintura. O esforço da tarefa se dividia nos movimentos soltos das mãos em obediência aos tesouros de traços floridos.

Era o ano de 1970 e eu ainda nem sabia para quê serviam os anos. Sabia, sim, do desajeitado jeito de colorir uma margarida, uma rosa, uma petúnia. Pequeno jardineiro de desenhos. Umedecia os lábios escorregando lentamente a língua entre eles, como se molhasse a terra branca de minha semeadura.

Findo o tempo livre de artista, tomado pela sensação da tarefa feita, do dever cumprido, segurava o paninho todo borrado de tinta imaginando o agradável jardim do velho Dito na fazenda. Descia os primeiros degraus da escada de ladrilho vermelho. Foi aí que veio um prenúncio de trovoadas e tempestades sobre a primavera do meu lenço. "Mulherzinha, mulherzinha, mulherzinha." Gritavam três meninos maiores que eu. De onde estava imperou sobre a liberdade do pintor a força impiedosa da gravidade e no primeiro tracei um vergão na bochecha e foi só.

O nariz esfolado no chão de cimento, logo após o último degrau da escada, tolerava entrar com o ar, poeira, o áspero do piso e raiva. De tudo, um pouco impregnava. Os olhos fechados não viram a consoladora de peitos fartos se aproximar e salvar o buquê sujo das flores, bronquear os meninos maiores e me proteger com os braços.

Nos campos densos de mata tropical, o velho Dito sempre armava uma arapuca de caça. Todo dia, fizesse sol, fizesse chuva, de facão em punho rasgava a floresta fechada da fazenda e na sombra de seu largo sorriso trazia lá de dentro a caixa da armadilha.
As mãos do velho Dito, fortes e rijas, revolviam terras e semeavam flores. Bordava, munido de inspiração divina, o jardim da fazenda. Verdadeiro. Se eu tivesse aquelas enormes mãos certamente teria vencido a batalha do lenço branco, como ficou conhecida aquela luta de criança na escola.

O velho Dito mandara pra casa, na cidade, a caixa de engenho e a presa. Esqueci da cambraia, das flores pisoteadas e da raiva. Quisera ver o animal emboscado dentro da caixa. Um tatu-bola. De casca grossa, marrom, unhas finas e andar silencioso. Da caixa foi colocado numa gaiola e distante dos aposentos da casa pelo forte cheiro de bicho e mato que trazia consigo. Alimentei a caça com folhas e milho.

Na tarde seguinte, os três meninos repreendidos pela professora peituda vieram me pedir desculpas. E eu a eles, igualmente censurado. Meu perdão saiu gelado e vermelho, conduzido pelo melado da boca do sorvete de groselha que acabara de chupar. O frescor do doce me alegrava e era superior àquela remissão. A professora sorriu e abraçou a nós todos, um a um. Tocou meus lábios em seu guarda-pó ao me puxar para perto de si em um abraço de indulto. Ainda tinha o sabor da groselha. Senti de perto as montanhas despeladas daqueles peitos e uma pequena erupção brotando de cada um dos avantajados mamilos, como se fossem sementes germinando, planta se mexendo, presa fugindo de emboscada. O adocicado do sorvete lambuzava o guarda-pó e eu via por detrás dele ensinamentos que a professora não dizia. O restinho da groselha, o pó do giz de ensinar e as tetas da mulher do ensino quase pulando da roupa iam se acomodando no nariz.

Em casa não pude ver os mamilos do tatu-bola que o velho Dito havia mandado. Já tinha sido descarnado, cortado em pedacinho e temperado pra ser comido no outro dia. A casca, com pequenos restos de gordura e carne, fora deixada em cima da gaiola ao lado de um saco de sal grosso com um bilhete seguro por uma pedra: "Esfregar o sal e cuidar da secagem da casca no sol."

A limpeza da casca daquele mamífero em extinção impregnou-se encardida em minhas mãos. Desejei sobrepor o canteiro de aromas alojados no nariz ao trabalho do sal. Apenas consegui usar o lenço de cambraia outra vez e jogá-lo fora. O aroma é um hóspede estranho, revela sentidos crus e depois os faz maduros com nódoas de lembranças.


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