INOCÊNCIAS
Doca Ramos Mello
 
 

Ó, mentira! Não foi nada disso. Faço questão de me abrir com o senhor, vou contar tudinho, porque não quero saber de encrenca p'ro meu lado, Deus me livre, já basta tudo o que passei nesta vida...

As pessoas são fofoqueiras, o senhor sabe, o que não deve ouvir de fofoca por aqui... Eu sou uma moça bonita, sou bem bonitona, não acha? Começa aí, a inveja, vou dizer p'ro senhor, inveja, mata, esfola, é uma gentinha muito da baixa esse pessoal que fala mal de mim até sem me conhecer, tá sabendo?

Nunca, nunquinha, eu?! Não tem perigo. Acontece que me apaixonei com tudo, um amor louco, ele mesmo falava, como é mesmo...ah, torrente de paixão, isso, não vi mais nada na minha frente, o senhor sabe, o amor é um negócio que tira a gente do sério, comigo foi assim mesmo, fiquei fora do meu juízo. Então fui morar com ele, quero dizer, ele comprou uma casa linda p'ra nós, se bem que fui morar sozinha lá, o senhor sabe, a gente só ficava junto quando dava,ele sempre teve muitos negócios, a família dele, sabe como é, eu era só a namorada.

Sim, ele botou a casa no meu nome, botou mesmo, prova de amor, ora, eu não ia aceitar?

O carro? Presente também, ele achava a casa meio longe do centro, não queria que eu andasse de ônibus, era um sarro, dizia que minha beleza merecia muito miais que um circular, que legal, o senhor não acha? Presente caro, claro, que só dá quem pode, aceitei porque ele ficava feliz, ué.

Ele me cobriu de jóias, sapatos, conta no banco com cheque cinco estrelas, logo eu, que nunca tinha tido nem uma poupança na Caixa... Era tudo presente, tudo carinho, eu acho uma safadeza quererem me jogar tudo isso na cara agora, por acaso aceitar presente é pecado? Então haja pecado neste mundo!

Eu não sou burra, não pense o senhor, sei que o fato de ele ter muita grana é um ponto contra mim, mas ele sempre soube da pureza do meu amor, completamente desenteressado, ele sabia, então qual é o problema?

Eu vou dizer p'ro senhor qual é o problema: preconceito. É, meu senhor, ninguém acredita que uma moça pobre de 20 anos - eu tinha 20 anos quando aconteceu aquilo que ele falou, a torrente de paixão - possa amar um cara rico de 59, é isso, ele tinha 59 anos na época. As pessoas vãologo pensando maldades, porcarias, ficam de olho torto, ô bando de ratos...

Sim, ele me levou para a Europa. Não pedi nada, p'ra ser sincera achei aquilo um saco, tudo velho, cheio de gente velha, e ele ainda me fazia visitar uns museus enjoados com ele, chatíssimo. Fui mesmo para agradar, se bem que achei chique viajar de avião, o senhor já andou de avião? Pois olhe, precisa ver que...

Como? Ah, as plásticas. Eu tinha o nariz meio grande, sabe, não grandão grandão, mas me incomodava, e os peitos pequenos... Vê a diferença agora, olha o perfil! E confira o air bag! Ele pagou, sim, disse que a vida é curta para se perder tempo com complexo, o senhor pode imaginar o meu complexo, aqueles peitinhos murchos, o narigão enooooome, então aceitei. Dinheiro, ele disse, é para trazer felicidade. Vão me condenar por ser feliz? Cai fora! Agora, dizer que ele me sustentatava, faça-me o favor...

Olhe, eu acho que a nossa desgraça foi a tal casa de praia, sabia? Vou dizer p'ro senhor, eu ficava sozinha demais lá, aquele areião todo na minha frente, o mar compriiiiido, sol na cabeça me fritando os miolos. E a crise. Sim, porque já fazia sete anos que a gente estava junto, o senhor sabe, todo relacionamento sofre uma baita crise aos sete anos...

Desgraça minha, foi nessa crise que conheci o Juca, o Juca, o senhor sabe, é da minha idade, musculoso, forte, um tesão, digo, ótimo amigo, a gente tinha muita coisa em comum. Adoramos um pagode!

Pois o Juca percebeu o meu aperto no coração e me levava p'ra dançar, me fazia companhia, só isso, mais nada. Aí o velho arrumou umas idéias loucas na cabeça dele, inventou que eu tinha um caso com o Juca, sei lá o que mais, andou dizendo que me pegou assim assado com o Juca e me mandou embora com a roupa do corpo, uma mão na frente, outra atrás mesmo, me ameaçou até.

Falou que ia tirar tudo de mim, o senhor acha isso justo, depois de sete anos, acha? Eu não acho, mas mesmo assim, só fiz chorar, não fiz nada disso que falam aí, seu delegado, acho isso uma sacanagem comigo, pô, o velho aparece assassinado, o Juca desaparece e querem que eu pague o pato? Dá licença, tô fora. Tenho boas lembranças dos dois e só quero tocar a minha vida. Tô errada, doutor?

 
 
fale com a autora