ONIPRESENÇA
Patricia Lopes

 

Não vou pensar mais nela. Não vou. E ai dela se me vier outra vez com aqueles lábios vermelho-almodóvar, com aqueles quadris inquietos, com aquele decote que mostra e não mostra, que me tortura. Aquele decote é pior do que se ela estivesse toda nua.

Se eu pensar nela vai ser só pra lembrar do mal que ela me fez, da falta que ela me faz, de tudo o que eu deixei de fazer só para ver ela dormir de boca aberta aqui na minha sala, na minha alma.

Vou pensar na Lúcia, na Ana, na Isabel e nela não, nunca, nem agora nem na hora da minha morte, amém.

E ai dela se me aparecer aqui falando aquelas coisas arrogantes, insensatas, lindas, aquelas frases feitas que não foi ela quem inventou, mas bem que podia ter sido. E ela tem tantas verdades, que me arrepio e me arrependo o tempo todo, como é que alguém pode ter tanta certeza, meu pai?

Você não sabe viver sem mim, ela fala, como se nem estivesse acabando comigo, como se fosse ela própria meus olhos ou todas as minhas lembranças.

Não quero mais pensar nela. Deus me livre e guarde. Quero amar Cecília, com seu gosto de doce-de-leite, Mabel, com suas mãos tão lindas, ou até a Zilá, quem sabe, que tem uma cintura fina de mulata e um cheiro bom de erva-doce.

E ai dela, ai dela!, se continuar me aparecendo em todos os sonhos, em todos os desejos ou de, alguma forma, em todas as mulheres que eu invento para esquecê-la.

Acabou. Não penso mais nela. Pronto. Estou aqui, sozinho, sou só eu, id, ego. Eu com meus 34, meus 1 e 85. Fecho meus olhos e me imagino sozinho numa casa enorme, só eu, numa enorme cama redonda. Mas eu nunca gostei de cama redonda. Olho pro jardim. Lá está ela. Linda. Boca vermelho-almodóvar, quadris inquietos, mais decote do que roupa. Ela vem e deita do meu lado, na cama redonda que sempre sonhou. Ela está aqui. O que mais eu posso querer da vida?

 

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.