HERÓI
Ly Sabas

 

Levanta os olhos, respira fundo e não se deixa abalar pela distância que ainda falta do topo. Aquela montanha sempre fora sua meta de vitória. Estica o braço direito, procurando apoio com o pé esquerdo. Tudo bem sincronizado. Sua vida era organizada dessa forma.

Levanta os olhos, respira fundo e não solta o ar enquanto acompanha o vôo de uma águia em direção à sua meta.
“Não permitirei que você me atrapalhe!” — grita em pensamento.

Como um príncipe do ar, o pássaro move a cabeça e olha-o com desdém. Ele sorri: “Isso, pensamento positivo”.- Por mais alguns metros consegue manter sua mente dirigida somente à escalada.

Um pio desvia sua atenção. “Pai...pai, olhe!” Novamente para de respirar. Lágrimas anuviam e atrapalham a visão. Prende automaticamente o gancho e dá um tempo para o coração. “Olha pai! Um ninho!”

— “Não quero chorar, não leva à nada!” — sua alma grita em fogo. Sacode a cabeça feito cachorro molhado.

—Vamos lá!— ordena-se. Pisa em falso e uma pedra solta rola pela encosta. —Não perca o ritmo!

Estuda a distância com atenção. A águia também calcula o tempo que ele levará para chegar ao ninho. Os dois medem força com o olhar e a ave ganha o embate. Voltando com disciplina a atenção para a escalada, ganha uns bons metros.
“Pai, são ovos de que ave?” — Com os olhos voltados para o paredão, visualiza no coração os três ovos. “Podem ser do que eu quiser?” — Havia isso entre os dois. Imaginação. Fantasia. Deixa-se ficar, olhos parados, novamente procurando a quem filiar os ovos. “Pterodáctilo?” — e a risada cristalina ecoa pelo vale. O som o traz de volta à realidade e lhe dá forças para voltar a escalar.
— Não será você que irá impedir-me dessa vez! — grita na direção da águia.

O que havia acontecido depois do encontro dos ovos? Seu pai jamais o deixara passar da plataforma onde encontraram o ninho. Todas as vezes que quisera escalar com o pai aquele paredão até o pico, tinha sido levado a desistir. Nunca estava na hora, era inexperiente, muito afoito,... incompetente, talvez? Ficava sentado ao pé da montanha, fazendo piqueniques debaixo das árvores quando mais novo ou remoendo a raiva quando mais velho. Seu analista dizia ser esse o motivo que o levara a “escalar” todas as dificuldades de sua vida profissional com garra, com fúria. “Demolidor como um trator”, diziam os adversários.

A fantasia que havia entre os dois na infância, foi murchando na adolescência e feneceu totalmente na maioridade. Não conseguia provar ao pai o quanto era bom, seja lá no que fosse. Às vezes fechava-se como ostra a imaginar mil situações onde seria o campeão. Medalhas de ouro... algo assim. Diversos prêmios durante a faculdade foram reais, mas não bastaram para chamar a atenção, eram “bobagens de adolescente”.

Um belo dia viu-se trabalhando no Império do Pai. Imposição da Mãe. Era como se não estivesse lá. Rangia os dentes em cada reunião onde suas opiniões eram consideradas inócuas. Só por quem interessava. Só para quem queria ser alguém. Não importava se para o mercado financeiro fosse “um gênio”. Nem ele próprio conseguia enxergar assim.

Um leve ruído de asas o faz parar em meio a uma troca de pés. Meio em falso, coração aos pulos volta a cabeça na direção do som. Lá esta ela, poucos metros acima, olhando-o como a dizer:

— “Aonde pensa que vai, seu incompetente?” - ruge em fúria e a ave bate em retirada.

— Vou chegar aí!— grita e continua repetindo a frase a cada passo.

Durante uma sessão de análise vislumbrou os pés de barro do Pai. Sua relutância em ir ao médico. Hospitais, exames... tinha verdadeira virulência a doenças. Essa descoberta deixou-o eufórico. Poderia... quem sabe poderia... não conseguiu chegar a uma idéia satisfatória. Isso frustrou-o mais do que não saber nada. Anos se passaram sem que desse um passo em direção ao amor–coração–alma do Pai. Viagens, mulheres, casamentos desfeitos, muito dinheiro e inimigos ganhos em proporções iguais. Amigos eram poucos. Nem esses poucos conseguiam penetrar a couraça, a redoma que levantava a cada dia para proteger-se.

Um raio de sol refletido no espaço entre os braços esticados o faz parar e o trás de volta a realidade. Ajeita os óculos e procura com curiosidade seu companheiro alado. Nem sinal da águia. Será que tinha perdido o interesse por ele, assim como seu Pai tinha perdido por sua companhia? Como Fausto, daria a alma para descobrir a resposta. Em que atalho da vida teria ficado caída, feito pele morta, a alegria de viver do Pai? Quando se transformara em máquina? Quando parara de segurar as mãos de sua Mãe e levar cada dedo aos lábios entoando a brincadeira infantil: "Dedo mindinho... seu vizinho..." e era uma delícia desfrutar da felicidade dela! — a lembrança dói tanto, que mais uma vez pisa em falso levando um puxão da corda esticada. Ao mesmo tempo, ouve um grito agudo da águia como a alertá-lo.

— Vou chegar aí! Vou conseguir! — e como um mantra vai repetindo, enquanto com determinação escala os poucos metros restantes.

Já podia ouvir com mais clareza os pios dos filhotes. Tem quase certeza de serem três.

— Deixa, Pai?! Quero mostrar para Mamãe!

— E como você acha que ficaria o coração da mãe dele? Com que desespero olharia para o ninho e veria só dois ovos? Acha que em um coração tão pequeno caberia tanta dor?

— Certo. — respondera sem muita convicção, enquanto esticava o braço e depositava com cuidado o ovo no ninho junto aos outros.

Estica o braço direito e firmando o gancho, dá um impulso levantando o corpo e se jogando no alto do desfiladeiro. Lá estava o ninho protegido por algumas pedras, como se tivessem sido arrumadas por mãos humanas. Os filhotes, três como adivinhara, dirigem a ele os olhos esbugalhados e as penugens desgrenhadas balançam ao leve soprar da brisa. Não demonstram medo, apenas curiosidade. Olha ao redor procurando a águia e a avista a poucos passos do ninho, pousada em uma rocha como a esperá-lo. Senta-se com as pernas cruzadas e respirando fundo se parabeniza pelo feito.
Resolvera que subiria e venceria o penhasco, no momento em que, atendendo aos gritos de ajuda da Mãe, encontrara o Pai caído aos pés da escada. Assim que vira o Pai deitado naquela sala fria, com tantos tubos a violarem sua vontade férrea; vencido por sua rebeldia em reconhecer a fragilidade do corpo humano; teve a certeza de que jamais saberia o mistério do afastamento dos dois. Como um símbolo de sua coragem e determinação depositaria no leito do Pai um ninho de águia e para isso venceria o penhasco de sua infância.

Agora, sentado ali, sob os olhares da águia e dos filhotes, compreendeu a lição do Pai a respeito do tamanho do coração como receptáculo de tanto sofrimento.

Por mais que já tivesse vivido, em seu peito não cabia tanta dor. E via agora, com uma clareza infinita que fora o orgulho que os separara. Esse péssimo conselheiro! Suplantara o amor no momento em que ficaram em pé de igualdade. Quando a fase de transmitir conhecimentos e sabedoria, passara a ser recíproca. Quando seu Herói, não aceitara a semelhança de caráter como coisa natural! E as lágrimas correram livres porque entendia agora, que não queria ser igual ao Pai. Queria somente receber o reconhecimento de que aprendera todas as lições, de que era bravo, corajoso e forte.

Os filhotes piaram trazendo-o de volta a realidade. Olhou para a águia, que devolveu o gesto com um inclinar da cabeça. Enxugou o rosto com as costas da luva e decidiu que deixaria o ninho ali, e levaria, como uma oferenda ao Pai, somente o seu Amor redescoberto.


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