COITOS EXEMPLARES V
Beto Muniz

 
 

“No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”
(JOÃO E MARIA - Música de Chico Buarque e Sivuca)

 

Eu era um bêbado desesperado com os pensamentos brotando do nada e entupindo as veias do raciocínio. Não conseguia pensar em nada mais que nos cinqüenta e oito minutos restantes, e quando eles se extinguissem seria tempo de escolher um caminho na encruzilhada posta diante de mim: Eiko, doce e ardente ou Neuza, neoluxúria e tabu? O caçador se tornara caça e não tinha para onde correr. Voltei à sacada, meia noite, e como no conto de fadas me transformei em abóbora. Eiko precisava ir. Na penumbra a bailarina se revelou por inteiro e, truque de bruxa malvada, uma aliança dourada surgiu em seu dedo. Quebrou-se o encanto como se fosse sapatinho de cristal. Noiva dum oficial do exército que estava retornando para casa - a cada quinzena ele tinha três dias de folga. Ela o buscaria na rodoviária. Suspirei tentando parecer desolado. Na minhamente a encruzilhada deixara de existir, mas fingi tristeza maior que o pesar sentido de fato e a acompanhei até a porta. O estalido da madeira se fechando contra o batente e o clique da fechadura aceleraram meus passos rumo ao quarto. Lá eu encontraria o sonho, o desejo, o sexo almejado nos dias inteiros e noites entrecortadas dos últimos noventa dias. Neuzinha. Neuzinha sem marido e sem vergonha esperava intacta por mim.

Ninguém ouve telefone em festa. Mas a festa fora tão mal planejada que o telefone tocou e quase todos os presentes ouviram, menos eu. Alguém gritou meu nome, berrou acima do som e do burburinho que era urgente. Pensei atender pela extensão no quarto, despachar a ligação inconveniente e me enroscar com as curvas da diarista. Abri a porta, entrei, ninguém me esperava na penumbra como eu imaginara. Não havia uma mulher nua, ou ao menos seminua se esgueirando pelas sombras qual serpente traiçoeira, pronta para dar o bote, a boca, o sexo e atender meus desejos. Atendi ao telefone e demorei para reconhecer o timbre da voz chorando a febre que afligia o filho. Nosso filho. Meu filho! Quanto tempo fazia que eu não o via? O último telefonema, quando fora? Aos poucos as nuvens dissiparam e se fez luz em meu cérebro. Meu filho ardendo em febre e eu em desejos. Neuzinha, intacto, KY... Luz! Senti-me um canalha imundo por alimentar miragens pornográficas quando deveria correr para o filho!

Abortei qualquer pensamento libidinoso e encarnei o pai zeloso que eu fora numa época recente e ao mesmo tempo tão distante. Peguei endereço do hospital e uma jaqueta no armário. A porta se abriu e Neuzinha entrou. Não parecia a serpente sinuosa, nada tinha da mulher fatal que eu vislumbrara na cozinha, a voz nem me pareceu rouca quando perguntou da japonesinha. Respondi que Eiko tinha ido embora e me calei tentando encontrar na mulher diante de mim vestígios duma fome que eu não mais sentia. Nada. Diante de mim estava a diarista entrando para arrumar o quarto como tantas vezes fizera nos últimos meses. Não me perguntou aonde eu ia, nem eu parei para dizer, apenas afastou o corpo e deu passagem para que eu saísse.

O carro. Onde estava o carro? Esquecido que o Clóvis tinha sido o último a usá-lo, e a única vaga na garagem estava guardando o carro do Deco, nem lembrei de perguntar ao zelador em qual das ruas estava estacionado meu veículo. Perdi algum tempo procurando. Mais de uma hora depois do telefonema eu estava na porta do hospital. Nada grave demais, uma sinusite facilmente curada com antibiótico. Alívio. Remorso ao encostar a mão na testa do filho e ele reconhecer o toque paterno, abrir os olhinhos murchos e sorrir uma felicidade doente, caída, desfalecida. Abracei o corpo quente de menino e o mundo a minha volta parou. Breves segundos que valem uma vida inteira. Eu me sentia um lixo de pai, ausente, egoísta, preocupado com o próximo coito, com conquistas de corpos e esquecido daquele ser inocente trazido ao mundo para viver uma saudade perene, constante, de um canalha amado que dizia estar sem tempo, trabalhando muito e que na semana seguinte ia encontrar um tempo que nunca seria encontrado. No abraço suas mãozinhas queimavam meu pescoço como um flagelo castigando o pecador. Chorei sim, e menti dizendo ser de felicidade quando aqueles olhinhos franzinos perguntaram se eu estava com alguma dor.

Passei a madrugada do domingo purgando meu espírito. A febre cedeu como por milagre e no final da manhã nem parecia que era o mesmo menino que eu encontrara arriado na maca do hospital. Prometi voltar no dia seguinte à noite, depois do trabalho, e me despedi. Atravessei a cidade sentindo o corpo aliviado, a alma leve, e no pensamento a disposição em cumprir o prometido. No apartamento restos de festa decorava os móveis, a pia e até o lustre. Um sutiã meio despencando encobria uma das três lâmpadas. Estava sem disposição para arrumar qualquer bagunça, sentei numa banqueta, peguei um cigarro e escutei algo, um ruído talvez, no quarto. Impossível algum convidado ainda estar na minha casa! Abri a porta entre apreensivo e curioso. Não acendi a luz, a fresta luminosa que entrava mostrava a cabeleira desgrenhada do Zé espalhada no meu travesseiro. Acalmei, acho que sorri pensando no Zé com uma mulher, ele nunca pegava ninguém. Fiquei no portal, parado, inconsciente da minha intrusão na intimidade do amigo. Não posso dizer que me demorei, mas passado algum tempo os lençóis se movimentaram e o rosto da Neuzinha Diarista apareceu do outro lado da cama. Fiquei mudo. Puxei a porta e sem tirar a jaqueta ou os sapatos me deitei no sofá da sala.

A luz do dia entrava pelas frestas da janela e uma das réstias iluminava a metade pendente do sutiã no lustre. Eu só queria dormir e esquecer minhas pretensões e pseudocanalhices. Eu não estava pronto para me tornar um devasso.

 
 

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