INOCÊNCIA NÃO TEM ÉPOCA
Edson Campolina

Na capanga encardida, já em farrapos, pesavam as latinhas de minhocas aprisionadas na areia molhada. Varas de bambu em verniz aos ombros, a aventura iniciara na tentativa de acompanhar os acelerados passos de meu pai pelo roliço cascalho da empoeirada e sinuosa estrada da fazenda Santo Antônio. As chinelas de borracha não paravam nos pés. A companhia do amigo Geraldo Luíz naquela tarde era uma rara exceção.

Atravessamos a velha ponte de madeira e tomamos o rastro de trilha que dividia a pequenina planície de vegetação rasteira, ouvindo a matreira experiência do velho:

- No mato a gente anda olhando onde pisa e pisando na base do mato, pra envergar o ramo e abrir caminho.

Meu pai enriquecia a caminhada com ensinamentos sobre a sobrevivência no cerrado. Vezes com tempero de fábulas e outras com empírico sentido científico, nomeando árvores proibidas, indicando frutos silvestres comestíveis ou venenosos, plantas com poderes de cura, possíveis tocas de répteis e felinos, até folhagens permitidas para uso higiênico em caso de emergencial flatulência sólida. Seguíamos, ouvintes atônitos, procurando pisar em seu rastro, preservando-nos na segurança de sua sapiência.

- Onde o córrego faz a curva é que tem maloca de peixe!

Ele indicava o barranco das curvas, donde de uma mesma margem podíamos avistar e velar o sucesso ou insucesso dos curtos golpes na vara em tentativas de fisgar os carás, piabas e tilápias. O velho sempre empreendeu um clima de disputa, injusta; considerando nossa condição de aprendizes pescadores.

Os rangidos de galhos se roçando e o choro da água nas pedras do estreito córrego contrapunha o silêncio compenetrado dos pescadores. Concentrava-me nos remoinhos d’água sendo esporadicamente alertado pelas investidas dos peixes envergando a ponta da vara.

O sol brilhava a poucas horas da tarde quando sorrateira nuvem sombreou o vale. A mata ciliar (somente adulto pude entender a origem e o sentido deste adjetivo – tão óbvio) se agitou com súbita ventania. Um furioso ataque do deus Eolo prenunciando um temporal de verão com ribombos e raios.

Privados de qualquer possibilidade de abrigo, eu e meu sempre amigo de infância, adolescência e agora de maturidade, permanecemos em nossos postos subservientes ao acesso do deus Júpiter deixando-nos encharcar pela chuva quente.

Repentinamente, de seu barranco entre o capinzal, Geraldo Luiz acenou assustado indicando a fuga de meu pai em busca de abrigo sob um coqueiro, receoso da umidade no fumo de rolo e na farofa de carne, mantimentos obrigatórios em suas aventuras.

- Fala pra ele sair de lá! Gritava em tom de súplica.

Aprendêramos naquela semana, com o professor Orlei, como nos proteger de raios em campo aberto – evitando o abrigo sob árvores e principalmente coqueiros.

Meu pai provocara em mim naquela tarde de verão, perturbação maior que Júpiter e seus relâmpagos. Provavelmente minha primeira taquicardia emocional alimentada pelo medo de uma chamuscada perda. Naquela demonstração de que a inocência, mesmo por desinformação, não tem época. Vi o mito do pai herói sobrevivente da mata, sábio e corajoso, descer os degraus mais altos do Olimpo de meu imaginário.

 

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