TINHA
Nato Borges

 

Tinha de tudo um pouco, e de cada pouco um pedaço guardava. Havia de tudo lá, brinquedos velhos, uma vitrola, livros aos montes, os seus e os dos outros que não devolvia. A cama desarrumada, desalinhada como era vida. O rádio, FM, sempre ligado. Gambiarra das boas, pilhas desligadas e os fios presos a um pequeno transformador de 12 volts. Durou bastante tempo assim.

Tinha um guarda-roupa. Quatro portas, talvez três gavetas e o fundo sempre entulhado de roupa suja. Na parte interna das portas, pôsteres, no alto, escondidas, revistas pornográficas, sempre prontas a animar tardes e mais tardes oficialmente dedicadas às lições de casa. Era pequeno o quarto, mas era um mundo indecifrável aos outros habitantes da casa, que mantinham dele uma distância respeitosa, e segura. Quase uma edícula, na porta tropeçava-se na bicicleta - dez marchas - no skate, nos patins e em tudo mais que tivesse rodas.

Na rua tinha amigos. Eternos como os da escola. Amigos do peito, de briga e de farra. Aqueles eram pra vida toda. Mais que brincar, faziam planos. Seriam donos de qualquer coisa, fariam viagens mirabolantes em caminhonetes compradas sabe Deus como, casariam entre si, para que os laços fossem mantidos e o círculo jamais fosse quebrado. Tinha certeza que seria assim. Enquanto isso as bicicletas ganhavam o mundo, que só até um parque próximo, mas era o mundo, e era deles.

Em casa tinha a família. Normal em tudo, das brigas aos afagos, das viagens às misérias. Havia os primos ricos e os primos pobres. Não se falavam na maior parte do tempo, mas não admitiam que terceiros falassem, pro bem ou pro mal, era uma exclusividade de sangue. Os tios e tias eram meio pais e mães de todos, sempre sob os olhares de aprovação, ou não, da avó.

Sim, tinha uma avó. Aquela sim, tronco e galhos de toda aquela gente. Tinha amor por ela, por suas broncas e por usa rabugice. Tinha lá as manias dela, como chupar em alto e bom som ossos e pés de galinha no jantar. Ninguém ligava, ou se atrevia a ligar. Entre um e outro som, ria de uma piada ou xingava um palavrão. Naquela voz, eram todos bem xingados, pronunciados com todas as letras, muito mais que elogios e carinhos, mas isso não importava. Tinha certeza de que ela estaria ali para sempre.

Abrigando sua gente e seus sonhos, tinha a casa. O sobradão era território seu, marcado com tudo que o desleixo deixava pelo caminho. Na sala, o almofadão sempre em frente à TV, na dispensa, os biscoitos de chocolate e, durante o noite, a combinação perfeita dos dois por horas e horas. O quintal - dividido com o cachorro, o gato e o papagaio - era a arena perfeita de batalhas intermináveis, envolvendo os quatro e mais uma bola, uma bolinha ou mais de uma, ou todas juntas.

O papagaio se virava bem no poleiro, mas os outros dois eram companheiros. Todas as noites, quando a casa dormia, ela ia até o quintal e deixava que o cachorro fosse para seu quarto, mais quente e mais aconchegante para os dois. Mais tarde o gato, depois de andar pela madrugada, chegava pela janela e se aninhava na cama, entre os pés. Dormiam os três até amanhecer, quentes, juntos. Tinha certeza que seriam assim o resto da vida.

Tinha os professores na escola. Alguns bons, outros nem tanto, mas todos o conheciam. Sabiam quem era. Os amigos o queriam por perto e era ali que gostava de estar, sempre por perto deles. No intervalo jogavam bola e ao fim da aula ficavam por ali, vadiando na quadra e contando histórias até o meio da tarde, quando iam para casa e para outros amigos, mais vadiagem e histórias. Tinham certeza que seria sempre assim.

Era assim que era. Tinha 15 anos e só muito tempo depois foi ter certeza de que nada mais seria como tinha sido.


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