UM TIRO DENTRO DE MIM
Claudio Alecrim Costa

Enquanto descia a ladeira, que me levava do portão de casa até a rua principal, essa com movimento intenso de pedestres, deslizava sobre o chão espelhado pela chuva como uma pintura viva de Pollock, transformando minha imagem em traços fantásticos, cortada por fios luminosos de água coloridos pelo néon de bares decadentes onde homens, em pleno cio por mulheres de Modigliani, penduravam-se nas portas, exibindo cigarros entre os dedos sujos e encardidos.

Não havia som, apenas a voz de meus pensamentos martelando minha cabeça cada vez mais forte. Meu espírito, liquefeito, explodia dentro de meu corpo em ondas pela irregularidade da calçada. Eu era meu único e definitivo cúmplice. Havia testemunhado todas as dores, doenças incuráveis, uísque barato, febres noturnas, sexo e perfumes, como miríades perdidas para sempre. Ninguém pode falar tão visceralmente de si sem deixar algo pelo caminho.

De repente, escutei o primeiro tiro, provocando uma revoada de pombos. Corri pelo passadiço de uma velha casa que levava à outra rua. Ofegante, parei e coloquei as mãos nos joelhos curvando o corpo, com o coração acelerado e um segundo tiro ecoou; depois, o terceiro. Continuei a correr, distanciando-me do meu caminho, conduzido pelo medo cego. Fiz nova parada, próxima a um estacionamento que servia de cemitérios para carros. Olhei em volta e nada vi, além dos sobrados escuros e abandonados. Podia ouvir ruídos de carros e uma algaravia distante de pessoas. Não estava longe da rua principal. Atravessei os carros destruídos do estacionamento até uma praça onde uns garotos jogavam bola. Sentei, exausto e assustado num banco molhado pela chuva e respirei aliviado.

- Moço o senhor escutou os tiros?

- Escutei...

- Será que alguém morreu?

- Não sei...

- Está com medo? Gente grande não tem medo, não é?

- Um pouco...

Levantei e alcancei o alvoroço da cidade, deixando pra trás o insólito episódio e o pânico em que me encontrava. De volta a minha conjectura, imaginava essa história contada a qualquer pessoa. Não conseguiria dar a dimensão absoluta do terror que sentira. Guardaria cada detalhe de minha breve aventura muda, cujas nuances tornavam-se cada vez mais invisíveis, tal qual uma bolha de sabão, levada por vento forte vergando árvores com raízes submersas como as minhas.

 

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