SABOR UVA
(da série NO LIMIAR DAS SOMBRAS)
Beto Muniz

 
 

Se a mãe soubesse que o menino recorda todos os passeios à vila como se fossem aventuras de livro, daqueles livros que a avó guarda trancados no baú e só tira quando o neto a visita e pede para ouvir outra vez a história do livro, a mãe nem ficaria dizendo coisas para fazer o menino desistir de acompanhar o pai. Ele gosta de descobrir o mundo na voz da avó, mas gosta de verdade mesmo é de conhecer o mundo por conta própria, por conta de sair além das fronteiras do sítio se imaginando o herói das histórias nos livros. Gosta de armazenar lembranças como se a mente fosse o baú da vó Albina. A mente dele nem tem muita coisa guardada, enraizada e crescendo feito pé de milho que a gente percebe desenvolver até criar espigas, mas já tem algumas histórias plantadas que diariamente são relembradas, regradas e sendo acrescentadas umas miudezas sim. São misturas de fatos com imaginações. o garoto vive um pedaço de história hoje e amanhã pensa que foi mais além, depois de amanhã o além já está incorporado, e passado um tempo a história daquele dia se transformou numa aventura sem tamanho nem fim. O menino não sabe mais onde terminam as recordações e começam as invenções, sabe que tem é muita lembrança boa dentro da cachola, umas aventuras que a mãe nem desconfia que existem lá dentro, estão guardadinhas. Ninguém sabe das histórias que o menino inventa sobre os passeios. São segredos, tesouros que ele guarda só para si. Não fala delas com o pai, não conta suas aventuras para a mãe e nem divide suas imaginações com os irmãos. Embora sejam companhias diárias nos afazeres, brincadeiras e aventuras, os irmãos não saberiam compartilhar o sabor incomum das recordações que invadem seus pensamentos em dias de ventanias, em dias de chuva, em noites de fogueira.

Ninguém sabe daqueles olhos azuis, ameaçadores e ao mesmo tempo meigos, surgindo de repente, com o menino na sombra da figueira, sentado na boléia da carroça, vigiando a égua amarrada ao mourão da cerca enquanto o pai fazia compras. De verdadeiro ele bebia um suco roxo, com gosto de uva marrenta que a mulher da venda serviu numa caneca esmaltada. Do resto pode ser tudo imaginação, invenção que a égua pedrês tinha se regalado com a água do cocho feito de pneu de trator e descansava sob os arreios, de olhos fechados, incomodados com tanto sol. Vez ou outra ela abanava as orelhas ou o rabo para espantar moscas. Na história toda o menino vigiava a égua e também o céu sem nuvens, vigiava as casas e a rua empoeirada que cortava toda extensão da vila. Vigiava também o redemoinho que começou lá no canto da praça levantando folhas marrons e poeira vermelha. Acompanhou o pé de vento girando, girando, atravessando a rua, levantando um pedaço de papel que subiu mais alto que a torre da igreja e caiu lentamente, sumindo por detrás do empório onde o pai estava. Decerto tinha um Saci cavalgando o redemoinho, porque a égua ficou agitada, empinou as orelhas e ficou com os olhos fixos na espiral formada por folhas, poeiras e ventos. Ninguém na rua, nem cachorro. "Parece vila morta", pensou e se assustou quando a moça falou "uma boa tarde" bem do lado dele. Ia responder, tinha aprendido com a mãe que era de boa educação responder ao 'boa tarde' das pessoas com outro boa tarde, mas o coração estava galopando igual o Saci montado no redemoinho e a fala não saiu. Ela sorriu olhando para dentro dos olhos dele e foi quando o menino viu aquela imensidão azul dentro dos olhos dela e o coração foi sossegando, sossegando até ficar batendo de leve novamente. Percebeu que não tinha respondido ao boa tarde e ficou pensando se ainda devia responder ou se a moça já tinha percebido que ele nem era tão educado assim, como a mãe queria que fosse. Na dúvida, antes responder tarde que não responder nunca, porém, a moça já tinha desfeito o sorriso e perguntava outra coisa que ele sabia a resposta, então ele respondeu: "Juberto". Ela riu novamente e os dentes eram tão branquinhos que o menino não sabia dizer se brilhavam mais os azuis dos olhos ou os brancos dos dentes. Ficou pensando nisso sem notar que ela continuava falando sem se importar se ele prestava atenção nas palavras dela. O menino se desdistraiu da distração e pensou que ela o estava achando um leso das idéias e por isso deixou de se distrair com os olhos e os dentes dela para prestar atenção no que a moça dizia. Ficou alguns segundos em dúvida, absorvendo a enxurrada de perguntas jorrando por entre os dentes brancos, para então dizer que era Gilberto, mas todo mundo o chamava de "Juberto" porque era mais fácil de dizer e também porque ele atendia. A moça pareceu que não queria respostas e disse que se chamava Brisa e, como se o nome dela não fosse importante, emendou uma pergunta nova. Queria saber se o redemoinho o assustava. E antes que ele respondesse que não, ela foi dizendo que a assustava, qualquer ventinho a assustava, principalmente aqueles ventos que antecedem as chuvas:

- Sabe aqueles ventos carregados de natureza, impregnados com cheiro de terra?

O menino achou bonito o modo como ela dizia as palavras, e o jeito engraçado de ela olhar para o horizonte como se o vento de chuva estivesse chegando. Ele até olhou lá para o fim da vila, na divisa entre o céu e a rua sumindo no capinzal seco. Nem vento, nem chuva, nem mesmo nuvem, e o menino voltou a se distrair olhando o azul do céu enquanto ela falava, mas logo se desdistraiu novamente e voltou a olhar para o rosto da moça e para o azul dos olhos dela. Não sabia o que dizer e por nova distração deixou o meio riso ficar no rosto. Ela viu o meio sorriso no rosto dele, deve ter pensado que o menino ria dela e ficou furiosa, foi se afastando da carroça gritando nomes feios para ele. Só então o menino percebeu as faces rosadas, a pele alva no pescoço e das mãos da moça. Era só o que tinha a mostra, o resto do corpo estava todo coberto por roupas, até os cabelos cor de fogo estavam protegidos por um lenço dourado e vermelho, muito bonito, amarrado na curva do queixo e sobrando duas pontas na altura dos seios. A moça gritava, inclinando o corpo para frente, dobrado na cintura, as mãos alvas se juntando na altura dos seios segurando as pontas do lenço ouro-carmim. O menino não entendeu os gritos, nem a égua entendeu, e os dois se assustaram. A mulher da venda saiu correndo e segurou a moça pelos ombros, falou com ela, a abraçou e fez carinho nas suas mãos. A moça foi se acalmando, acalmando, parando com os gritos para então chorar no ombro da mulher da venda, o que assustou mais ainda o menino, mas não assustou mais a égua. Foi com alívio que o menino viu o pai saindo também da venda. Ouviu a mulher falando com o pai, ouviu o pai falando com a mulher, só que não entendeu a conversa dos dois. Ficou ali, com o corpo imóvel na boleia da carroça e o coração pulando mais que o Saci no corrupio dos ventos: "O pai vai dar um cascudo por ter rido da moça". O pai veio pisando firme, largou duas sacas de mercadorias no fundo da carroça, pegou a caneca esmaltada das mãos do menino e entregou pra mulher, despediu-se dela, desamarrou a égua e subiu na boléia. Pegou as rédeas, estalou os lábios fazendo um barulho repetitivo de beijo exagerado e a égua começou a andar preguiçosamente pela rua em direção contrária ao sol. O menino ainda com gosto de uva marrenta na garganta, ficou olhando a mulher da venda entrar levando a moça e a caneca com um restinho de suco no fundo esmaltado. Depois o menino endireitou o corpo no assento e esperou a bronca do pai. A égua trotando e o menino olhando a sombra da carroça sendo pisoteada pelos cascos. "Decerto que o pai vai dar uma bronca", pensava, e ficou esperando o pai falar. Esperou e nada. Então resolveu se justificar com o pai:

- Eu não ri dela.

O pai não respondeu e por isso o menino continuou:

- Ela disse que se chama Brisa.

Meia légua depois, agoniado com o silêncio paterno o menino continuou despejando incoerências:

- Disse também que tem medo do vento.

O pai não riu, mas pareceu ao menino que ele se ria por dentro enquanto agitava as rédeas no lombo da égua para que ela acelerasse o trote. Depois de alguns minutos, talvez para calar a boca do menino, o pai falou que a moça tinha miolo mole e que era pro menino varrer ela dos pensamentos pois nem valia ficar pensando no sucedido. O menino desobedeceu ao pai em silêncio, ficou o resto da viagem pensando naqueles olhos azuis, e nunca mais esqueceu a confusão de emoções nascidas naquela tarde. Guardou para si a aventura do dia como guarda as melhores lembranças dos passeios à vila. Porém, deve ter acrescentado um monte de imaginação na história e ela cresceu, se tornou importante e desde então, em dias de ventania lhe vem um gosto de uva marrenta pela garganta acima.

 
 

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