CEREAIS E UMA AMANTE
Claudio Alecrim Costa

A casa estava sob um silêncio celestial. Eu procurava não quebrar esse momento, monge que me tornara, deslizando sobre o assoalho como fantasma sorrateiro. Era o meu castelo, envolto por nuvens mágicas sob um céu de cor imaginária, onde as estrelas brilhavam riscando o céu em viagens cósmicas, deixando traços que se desmanchavam no ar.

No banheiro, liguei o chuveiro e comecei a me barbear. O vapor embaçava o espelho e minha imagem, agora aquarelada, escondia-se sob a água condensada.

A campainha tocou estridente e quebrou todo o encanto da minha paz que, de alguma maneira, parecia ser passageira e fugaz, como tudo que é bom e nos faz, por um instante, acreditar que existe um sentido na vida além dos cereais que nos esperam para um café matinal regido por uma dieta saudável.

Quando abri a porta, com a cara ainda coberta pelo creme de barbear, vestido com o roupão, dei com uma mulher segurando os sapatos e roupas que lhe escapavam pelos braços já repletos de calças, meias, tudo misturado a outras peças como num espetáculo circense.

- Meu marido!

- Deve ser um engano, senhora...

- Ele vai me matar! Ajude-me!

- Como assim?

- Sou amante do seu vizinho...

- Está no apartamento errado, então...

- Preciso me esconder...

Entrou e foi deixando as peças de roupa caírem por todo canto, transformando minha sala na própria cena do adultério. Tranquei a porta e fiquei estático, enquanto a mulher, sem direção, tentava desesperadamente encontrar algum lugar que lhe desse abrigo seguro.

- Onde fica o seu quarto?

- Está louca?

- Preciso me esconder...Ele vai me matar...

- Como pode enganar o seu marido?

- Vai me dizer que nunca pulou o muro?

- Não sou casado. Até que gostaria.

Encarou-me por alguns instantes e, com um ar de interesse, falou:

- Que desperdício!

- Está louca?

- Já me perguntou isso.

- Não me interessa!

- Podemos ser amigos...

- Com o seu marido tentando te matar?...Vai pensar que o Ricardão sou eu!

- Não podia adivinhar que estava entrando na casa de outro homem!

- Está se profissionalizando!

- Piada de mau gosto...

Ouvi vozes no corredor. Olhei pelo olho mágico e vi um homem, cercado por vizinhos, e sua expressão era de ódio.

- É o seu marido!

- O que fazemos agora?

- Como assim o que ”fazemos” agora?

- O que vamos dizer?

- A verdade!

- A “verdade”? Que eu, quase nua, entrei em sua casa por engano?

- Vou abrir a porta...

- Não! Fiquemos em silêncio.

- Isso é ridículo!

Passado alguns minutos, tudo se acalmou, ficando apenas o som ofegante de nossas respirações, ambos assustados feito animais acuados.

- Sou uma louca varrida...

- Pelo menos você sabe o que é, nessa estória...

- Você tem cigarros?

- Em cima da mesa.

- Obrigada.

- Por nada.

- Acho que vou indo...

- Ainda pode ser perigoso...

- Gentil de sua parte.

- Quer tomar um banho e se vestir com calma?

- Gentil de sua parte.

- Você já falou isso.

Caímos numa risada infantil. Pude ver uma mulher de beleza discreta, com um sorriso sincero e olhos líquidos que me chamaram atenção.

- Jantaria comigo? - arrisquei.

- Sério? - surpreendeu-se.

- Bom, se nem o seu marido nem o seu amante se incomodarem...

Voltou a rir. Agora, com a naturalidade de uma criança que ganha um presente inesperado.

- Não sei se posso administrar tudo isso...

- Bom, o banheiro fica no meu quarto.

- Obrigada!

- Afonso. – disse eu, apresentando-me.

- Desculpe-me! Sou a Júlia!

- Prazer, Júlia.

- O prazer é meu, Afonso.

Olhei para o prato com cereais. Peguei outro e o coloquei ao lado. Será que ela gosta de cereais? A casa está uma bagunça. Havia deixado minhas roupas no banheiro. O quarto estava um caos também. Precisava dar um jeito nisso. Precisava pensar na roupa que usaria para o jantar. Será que ela aceitaria meu convite? Tinha que ir com calma. Afinal, tinha um marido e um amante para enfrentar.

 

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.