O ACERTO
(OU LA DOLCE VITA DE UMA IMIGRANTE)
Leila Silva

 

Essa puta não tinha nada, estava passando fome quando a encontrei e eu que sou muito boa, acredito em todo mundo, fiquei com pena e fui ajudar, trouxe ela aqui pra dentro de casa, comprei até cigarro pra ela. Ela não tinha trabalho, não tinha onde morar, não tinha onde cair morta. Você precisava ver como era humilde e boazinha nessa época. Hoje é essa arrogância. Vai ser fingida assim no diabo que a carregue, viu. E sabe o que mais ? Sabe pra quê que aquela vagabunda trouxe a filha ? Use a sua imaginação. E a menina é menor, viu! Bom, é o que dizem, eu como não gosto de falar do que não tenho certeza fico por aqui….o que me interessa é o seguinte, meu money. Só isso. Ah! Escreve aí, ela me paga, ela me paga por que senão o escândalo que eu vou fazer vai ser tão fenomenal que nós vamos ser, as duas, expulsas desse país, mas não tem problema. Eu posso ser deportada, mas ela vai junto. Vamos juntinhas no avião. Aliás, vou telefonar pra ela agora lá no trabalho dela. É, é isso mesmo, não deixar pra amanhã o que se pode fazer hoje. Esperem, onde está o número daquela cobra? Como é que eu pude ser tão burra assim, me digam, como é que eu pude? E nisso que dá a gente tentar ajudar esse tipo de gente. Oh, inferno! Não dá para bancar a boa samaritana por aqui, viu? Aprendam isso. Eu estou aqui tolerando esse frio pra fazer um pé de meia, como todo mundo, não? Trabalho feito uma escrava. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta e às vezes até sábado esfregando chão, limpando poeira pra depois dar o meu dinheiro suado pra essa vagabunda. Não, não, esperem só. Aqui está o número, demorei para achar porque estava procurando no F de filha da puta, deveria procurar no M de ‘mãe da puta’ ha ha ha. Vamos lá, 726 54 23. Merda! Não atende, mas daqui a pouco eles abrem, não tem problema. O que é que você está dizendo? Como é que é, eu converso muito é? Ouviram essa? Porque é que você não vai procurar um trabalho ao invés de me encher o saco? Sabe quanto é que custa uma fralda do nosso filho? Não, não sabe porque nunca comprou, não é mesmo, lindão? Calar a boca! Vocês conseguem acreditar que eu vim para essa Bruxelas fria por causa desse ingrato? Cada uma que a gente faz na vida. Vamos lá comigo, Sandra? Eu vou nesse restaurante é agora. Fica lá perto da Grand Place. Não, não! Não é longe. Vou só pegar o meu casaco. Até a gente chegar lá o restaurante já abriu. Pega o seu casaco também porque está frio pra caramba. Não se brinca com isso, minha filha. Eu, quando cheguei aqui quase fui parar no hospital. O que que é, imprestável? Exagerada, eu? É porque você nem se lembra, de tanta importância que você dá à sua mulher. Vamos logo, deixe esse pamonha aí. Vê se você serve pelo menos pra tomar conta do meu filho. É, é seu filho também mas é que tem hora que a gente até esquece. Vamos, Sandra, vai descendo na minha frente. É bom sair um pouquinho para dar uma refrescada na cabeça. Vamos pegar o metrô logo ali na esquina. Ai que frio, vamos correndo. Você já esteve na Grand Place? É linda. A gente faz o seguinte, enquanto eu rodo a baiana lá no restaurante você dá uma olhada na Grand Place. E pertinho, você não vai se perder. Ali, vamos entrar naquele buraco ali. Brrrr! Você tem ticket aí? Não, né? Não tem problema, a gente usa o meu. Aperta o passo que lá vem o metrô. Tem dois bancos ali na frente. Eu sei que eu converso demais, mas me irrita quando o César me diz isso. Além disso eu tenho que conversar por nós dois porque ele raramente diz alguma coisa. Mas também quando abre a boca é pra me encher o saco. Olha aquelas duas lá que vão entrar, parecem brasileiras, não? Vamos ficar caladinhas e escutar o que elas dizem. Não te falei? Acho que já as vi em algum lugar antes. Sei lá, lá no Canoa Quebrada, talvez. Você já foi lá? Vamos lá um dia desses, vamos dançar feito umas loucas. Adoro dançar e, modéstia à parte, danço muito bem. E bom pra descarregar. Já faz quase dois anos que estou aqui. O César veio primeiro e eu vim três meses depois. Que saudade da minha família. Eles sentem muito a minha falta. Eu sou a filhinha querida do meu pai. Quando eu vim foi um sofrimento mas eu estava apaixonada, já viu, né? Daí eu contei para a minha mãe que não era virgem mais, que eu e o César já tínhamos transado. Ela não sabia, já viu como mãe pode ser boba, né. Ela esperava que a gente ainda casasse na igreja…véu, grinalda e tudo aquilo. Bem que eu queria mas…. Ali, vamos descer na próxima estação. Que frio, Jesus Cristo. Vá se acostumando, minha filha. Vamos virar ali. Depois a gente pode tomar um chocolate quente pra esquentar. O restaurante fica ali naquela esquina, eu vou lá conversar com a dita cuja e você pode me esperar na Grand Place, se quiser. Logo ali. Isso. Eu te encontro na esquina e vamos tomar o chocolate. Até já.


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