BOCA MALDITA
Beto Muniz

 
 

Minha mãe era parteira e benzedeira. Tinha muito boa intuição para descobrir doenças só de olhar para a cara do paciente - se pudermos chamar o doente que procura benzedeira de paciente. Na maioria das vezes ela perguntava o que o pobre estava sentindo, cutucava um rim, um fígado, uma barriga inchada, olhava dentro dos ouvidos, puxava a pálpebra inferior para baixo, mandava o doente mostrar a língua, olhava dentro da boca, fazia uma cara de desconsolo, só pra deixar o enfermo mais achacado, e sumia casa adentro abandonando quem quer que fosse lá na saleta.

Quem conhecia as manias da benzedeira já sabia que ela tinha entrado em busca da cura, das ervas medicinais secretas, mas quem estava se consultando pela primeira vez ficava ali, pensando que estava à beira da morte e a curandeira tinha desistido de curá-lo. Só faltava morrer em pé, que ela nem se dava ao trabalho de mandar sentar. Eu e meus irmãos, quando ainda pequenos, ficávamos observando os doentes que diariamente vinham em busca de ervas, cascas de árvores ou raiz milagrosa e aprendemos a decifrar sinais do corpo, gemidos, lamentos. Com o passar do tempo sabíamos diagnosticar a moléstia só de ver o jeitão capenga do maleitoso chegando a nossa porta. Crescemos mais rápido que a fama de nossa mãe e então, além de diagnosticar o mal, passamos a arriscar também o vegetal que forneceria a cura. Quando vinha carregado era triste, a gente sabia que sujeito que não agüentava andar raramente se curava, a menos que fosse criança. Esses, os carregados adultos, a mãe mandava levar pra cidade porque só faca de doutor e remédio de farmácia para darem jeito. Mas a gente sabia que era só o tempo do pobre sumir das nossas vistas que ela já rezava encomendando a alma a Deus. E raramente falhava! Assim, com tudo que aprendemos no decorrer dos anos, fomos nos acostumando a essa rotina de pajelança, aprendendo sobre doenças e curas, até que cada qual percebeu que ser curandeiro não dava fortuna. Eu fui cuidar da vida e minhas irmãs também. Com mamãe só ficou o caçula, ainda muito novo para cuidar do próprio nariz. Mamãe cuidava do filho e da casa mais que dos habitantes da vila e estes, com o crescimento do povoado, foram deixando de procurar a parteira e benzedeira. Os pacientes foram rareando, rareando até não aparecer ninguém por dias, semanas. Os mais antigos, os mais necessitados, ainda vinham consultar a benzedeira e os mais moços embora respeitassem a parteira que os haviam posto no mundo, preferiam confiar a saúde ao doutor.

Anos depois nossa antiga casa voltou a receber doentes diariamente, parecia novamente casa de benzedeira, mas era então uma moderna farmácia. Meu irmão caçula achou que poderia sim, fazer fortuna com as moléstias do povo. Estudou na cidade e voltou para continuar no ramo de negócios da família. A Benzedeira ainda mora nos fundos da farmácia, mas está sempre a porta recomendando uma erva, uma casca sagrada, uma raiz, um chá... Com a liberdade que a idade lhe permite já nem se preocupa em esconder seus segredos e vaticínios, basta um desenganado cruzar a entrada do estabelecimento para ela diagnosticar: - Esse Deus já está abraçando – e faz o sinal da cruz.

Dia desses voltei para visitar a velha casa. Estava na soleira da farmácia quando um acompanhante do doente viu aquela velhinha, pequenina, franzina, cabelos ralos e brancos fazendo o sinal da cruz e sussurrou para mim, sem desconfiar do meu parentesco: "É uma santa, mas ô boca maldita". Em solidariedade resignei-me a sorrir. Já tinha percebido, com a experiência de anos observando o alheio, que o resmungão se conformava. Tanto que economizou o dinheiro dos remédios – trocou a receita por umas aspirinas, e saiu para encomendar o caixão.

 
 

fale com o autor