AS MUITAS BOCAS DE LAURA
Leila de Barros

Naquela noite, ela sentia sua solidão assemelhar-se ao Grand Canyon, ecoando e mergulhando num imenso nada.

Laura se via assim, tal qual um sulco no meio do deserto, esvaindo-se como nuvens que se dissolvem num azul etílico.

Desce o zíper da calça jeans, despe-se da camiseta, desata o sutiã e anda com a parte debaixo da lingerie pela casa.

Até a liberdade lhe pesa nesse momento.

Vai até o box do banheiro e abre o chuveiro. Sente a água escorrer pelo corpo feito uma chuva de meteoros enquanto regurgita sentimentos e ouve os sons do silêncio.

Não desejava ouvir sua própria alma e tampouco quis ouvir seus CDs.

Olhou-se no espelho e atirou nele seu vidro de perfume favorito, que ganhara de uma cliente do ateliê de costura.

No centro do espelho surge uma estrela rasgada e Laura fixa o olhar nesse buraco estrelado e inesperado.

- Vou sair para dançar, ela pensa.

Seu companheiro de mais de 20 anos dormia no quarto ao lado seu sono insofismável. Merecido e justo sono após 10 horas de trabalho no centro de operações do metrô.

Não era afeito à dança, ressabiava-se com o contato mais popular. Preferia ouvir orquestras e clássicos com violino ao fundo, quase sempre à meia luz, quieto, calado.

Para Laura, bastavam-lhe umas notas musicais e ela iniciava seu balé solitário onde quer que estivesse. Ele apenas contemplava e sorria.

Ela caminha até o armário com passos de gazela no cio, já pensando no jogo de luzes, nos casais rodopiando e no êxtase de dançar.

Hesita e vai até o leito onde dorme seu companheiro nos braços calmantes de Morfeu.
Sente um ímpeto de beijá-lo e afagar seus cabelos grisalhos, mas apenas roça sua boca quente na face adormecida e foge, apreensiva por não acordá-lo de súbito.

Começa o ritual mágico da transformação. Lingerie de renda, meias fumê, vestido azul marinho colante, brilhante, sensual.

Vai até o espelho partido. Mira-se nos pedaços que sobraram e inicia um trabalho artístico que emoldura seu rosto de traços renascentistas, apesar das linhas adquiridas pelas longas noites de pouco sono, mais pelas costuras do que pelas almejadas danças.

Olhos de tigre farejando a caça, levemente delineados de preto, a pele coberta pelo cetim da base clara e a boca cuidadosamente pintada, de lilás forte, brilho de néon.

Laura beija o espelho e imprime nele sua marca. Nesse devaneio, recorda-se de seu pai militar dizendo repetidamente a mesma frase:

- Boca de mulher é como boca de anjo, nunca deve ser um agente de traição e vergonha!

Ela rodopia e olha-se novamente, para certificar-se de sua beleza cativante e chamativa.

Calça a última peça do ritual, a sandália azul marinho de strass com salto de 10 centímetros que a deixa com a silhueta ainda mais elegante.

Olha o relógio e passa a mão na bolsa de festa, saindo apressada em direção à rua.

 

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