ONDE ESTOU?
Adriana Vieira Bastos


perguntou-se, atordoada, ao acordar no leito do hospital.

As paredes, embora suavemente revestidas de verde-claro, primavam pela indiferença. O cheiro do éter ainda a mantinha grogue. De um lado aparelhos estranhos; do outro, o gota a gota do soro metódico a deixava ainda mais assustada.

Sentia-se um estilhaço do nada! Não sabia quem era, de onde veio, para onde ia, se é que realmente tinha um lugar para ir.

O suor começava a tomar conta do seu rosto e o coração resolvera arbitrariamente disparar, como se quisesse tirá-la do choque em que se encontrava.

Devia ser um pesadelo?, pensou. Fechou os olhos na esperança de que pudesse despertar daquele horror.

Mas não despertou!

Era real! E o pior se anunciava.

Virou-se para a porta do quarto e viu um homem alto, com o semblante cansado, despedindo-se sabe-se lá de quem. Sentiu-se mais pálida ainda. O pânico era a única emoção que certamente conhecia. Na tentativa de se agarrar a um fio de razão, retesou o corpo e esperou que ele viesse em sua direção.

E ele veio! Calmamente aproximou-se, sentou ao seu lado e, com um sorriso amarelo, disse-lhe para não se agitar. O pior já havia passado...

Ainda bem que estava deitada ? pensou. Olhou para ele e, com medo da resposta, balbuciou ? O que aconteceu? Quem é você?

Ele parou um segundo, olhou fixamente para o chão, engoliu em seco e respondeu-lhe ? Acalme-se, Mari! Sou Ricardo, um amigo. Não precisa se preocupar. Você saiu de uma delicada cirurgia no cérebro. Perda de memória neste momento é normal, e até esperado.

Mari? Cadê a minha família? Se é que tenho família...

Com esta pergunta via prosseguir a sua nova trajetória. Trajetória em busca do nada, pois nada lhe fazia sentido. A vida, o hospital, aquele homem e o vazio que imperava dentro do cérebro envolto naquela bandagem assustadora.

Dois meses passaram-se e tentava, aos poucos, acostumar-se com sua nova realidade.

A família ainda não parecia ser sua. Os remédios não pareciam ajudá-la. Os exercícios fonoaudiológicos a faziam se sentir mais ridícula do que o seu próprio estado. De tranqüilo, só a descontração do amigo, pois este não a questionava, não a exigia. Simplesmente conversavam e desfrutavam o prazer da música, única lembrança viva de sua vida passada...

Um dia, não resistindo, perguntou a Ricardo se ele não tinha alguém, afinal, o via com bastante freqüência. Havia perdido a memória, mas não o paladar e o bom gosto! Sabia admirar um homem atraente, com qualidades suficientes para seduzir uma mulher.

Ele, dando a impressão de já esperar tal pergunta, deu uma parada e, como da primeira vez, olhou fixo para o chão, respirou fundo e com a voz triste disse-lhe que a mulher que amava havia saído de vida dele no dia em que iriam comemorar a união dos dois.

Curiosa com tal relato, perguntou-lhe por que não fizera nada para convencê-la a ficar. Ele respondeu que não tivera tempo. A mulher simplesmente sumiu e ele ficara só, com a triste lembrança daquele dia. Sem prolongar, encerrou sua história com a frase “coisas da vida!”.

Ricardo tinha razão!, pensou. Sabia, como ele, o quanto a vida prega peças! Ambos estavam abandonados à própria sorte. À deriva, como diz o pescador. Quem sabe, por isso sentia-se tão bem ao lado dele?

O tempo foi passando e alguns passos aprendera a dar. Reconhecia os pais, as irmãs. Voltara a dar aulas de música, e tentava se adaptar a nova vida. Sim, pois hoje era outra. Outra mulher, a procura de um novo rumo...

Um dia, conversando com a irmã, disse-lhe que estava começando a acreditar em vidas passadas. Como, em tão pouco tempo, Ricardo passara a ser tão importante na sua vida? Parecia que se conheciam há anos. Entendiam-se com um simples olhar.

E a irmã, com um olhar maroto, rindo, perguntou-lhe se não andava apaixonada...

Apaixonada? Que maldade!, retrucou. Por que as pessoas não acreditavam na amizade entre um homem e uma mulher? Ela gostava desta amizade e não iria abrir mão dela por nada...

Assim acreditou, até deparar-se com Ricardo, feliz, dizendo-lhe que ouvira de alguns amigos que sua mulher parecia estar querendo voltar.

Por pouco não derrubou o refrigerante na roupa, tamanho o susto que levou por esta informação tão fora de hora. Ricardo, desta vez, olhou-a fixamente nos olhos e perguntou-lhe se estava tudo bem...

Atordoada, com a cabeça girando e tentando disfarçar o seu desconforto, olhou para ele e disse ? Tudo, Kiko!

Kiko?!

Esta foi a palavra mágica para enviá-la ao túnel do tempo e fazê-la voltar ao dia em que, esperando-o na calçada de seu trabalho, para comemorarem o “dia deles”, deparou-se com um carro em alta velocidade e não se lembrou de mais nada...

 

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