OS COPOS
Kátia Rodrigues

 

Pe-da-ços!! Ca-cos! Foi apenas o que restou. A melhor coisa que tinha feito, depois dessa semana infernal foi quebrar todos os copos. Um após o outro. Cada um. Um por um. Pouco a pouco. Espatifaram-se. Ca-cos!

Sobraram pés, flagelos de copas que um dia foram preenchidos. Agora estavam vazios, como ela. Sorriu ao perceber que pelo menos ela poderia levantar-se, cruzar a sala, bater a porta e sair. Os copos e seu dono não. Os primeiros jaziam. Seu dono, esse quando chegasse, ficaria pasmo em sua lógica absurda, se preocuparia em manter tudo muito limpo, pondo-se de imediato a juntar os cacos. Nem mesmo ousaria deixar para amanhã, quando a empregada chegasse. Fazia parte dele, esconder-se. Por traz de sua própria vida, tão cheia de coisas que não lhe permitiam pensar em quem mesmo se transformara.

Ela saiu, batendo a porta, em lágrimas que escondiam um sorriso. No hall procurava na bolsa a chave do carro. Na memória tentava lembrar-se onde tinha deixado o bendito carro. Na verdade não sabia se valia à pena dirigir neste estado. Olhando-se no espelho, a maquiagem borrada, os olhos vermelhos, a boca partida, e ainda assim sorriu, diante de sua coragem: quebrara todos aqueles malditos copos, guardados na cristaleira que o passado dele deixara. Eram tão preciosos; uma relíquia de família, "têm um valor inestimável", dissera-lhe.

A chegada do elevador interrompeu-lhe os pensamentos. Onde estaria os malditos óculos?? Boa tarde, disse entre os dentes, a um vulto que olhou somente os pés. Ah, aqui estão eles, colocou de imediato os óculos, fechando a bolsa.

Passava a mão nos cabelos, esfregava os lábios um no outro, como se quisesse molhá-los. As lágrimas teimosas corriam. Droga. Saiu do elevador apressada, soltando a porta que segurou por um segundo apenas. Dane-se, pensou. Danem-se todos, mas principalmente ele.

Ainda ouvia a maneira cínica com que ele dissera que precisava de um tempo, para saber de seus sentimentos, de acompanhar seus próprios projetos; ela como sempre ouvira, tentando controlar-se, não demonstrando a dor que sentia. Ele pensando-os civilizados, generoso dizia que não esperava dela outra reação, que não a compreensão que seu silêncio dizia agora. Cretino, pensou abrindo a porta do prédio e indo até o sinal. Por sorte o sol já se escondera, e as luzes do fim do dia, deixavam as pessoas absortas no seu regresso a casa. Então ela o olhou nos olhos, no que sabia ser a última vez. E se ele não fosse tão egoísta, teria percebido o ódio que ela lhe lançava. Burro!

Atravessou a rua, acompanhando com o mesmo olhar furioso de antes, o ciclista que avançara o sinal, olhando os transeuntes com o canto dos olhos, tentando com isso mostrar-se adequado e respeitoso. Espertinho de bosta pensou com raiva. E na calçada, com cheiro de mar, lembrou-se de quando ele dissera que a procuraria, quando estivesse pronto. E a beijara na testa. Com um carinho triste para quem ama. Em seguida saiu, mas antes pediu que deixasse suas chaves, em cima da mesa, para que assim a decisão de ambos fosse cumprida, e que ficassem realmente sem se verem. Claro, respondeu tranqüila. Levantou-se e entregou-lhe o chaveiro, pedindo que ele tirasse as duas chaves, pois assim não quebraria as unhas.

Ainda ouviu a gentil recomendação que não tivesse pressa em sair, que ficasse o tempo que quisesse. Mas que ele tinha um compromisso e, misterioso, que não poderia atrasar-se. Tudo bem, foi só o que conseguiu dizer. A porta fechara-se e agora se sentia à vontade para chorar. Perdeu a noção do tempo. E quando olhou por trás da cortina, viu que a tarde se escoara. Foi quando olhou os copos. Arrumados um a um, cuidadosamente. E veio a idéia: macabra, cruel, e irresistível.

Tirou um por um, e enfileirou-os por tamanho, sobre a mesa. Contava-os: 59. Do conjunto, tão precioso, faltava uma taça de champagne, desaparecida há mais de cinqüenta anos, contara-lhe uma vez. Era uma pena, sorriu, senão o jogo seria completo. Se já tem um valor incalculável, pensava enquanto fechava a porta do móvel, completamente vazio, imagina se a taça de outrora também aqui estivesse.

E então, resolveu tirar os sapatos. E sentara-se sobre o tampo da mesa de jantar, afastando uma cadeira, para ali colocar os pés. Sentia-se uma rainha. E na penumbra da sala, arremessou cada um dos copos na parede, fazendo um barulho mágico, que lhe cortava os soluços, que pouco a pouco se transformaram em risadas.

Nem bem desligou o alarme, o flanelinha que já tinha levado o dele, materializou-se; os olhos vermelhos pareciam com os seus olhos, por trás dos óculos. Enquanto sentava, disse-lhe que deveria cuidar-se. E ele disse que o fazia, apesar da vida difícil. Ela ouviu desinteressada. Talvez tenha falado para si mesma. Virou-se, colocando o cinto e procurando no cinzeiro alguma coisa, achou moedas, que sem nem mesmo contá-las, passou ao seu fiel escudeiro. È pra você disse. Fechou o vidro, ligou o rádio, e pôde enfim dar a partida. Começava agora uma outra caminhada, o passado estava irremediavelmente perdido, acabado. De alguma forma sabia que seria feliz.

 

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.