FOI SÓ O CALOR, BABY
Luís Valise

 
 

“Ontem não pude te ver, e a saudade cravou em mim uma flor de vidro, um dente de aço, um pedaço de bala. Dormi com a lembrança do teu sorriso suave como o vôo da gaivota, e meu amor te vigiou durante o sono, como um gato sentado na janela. Te espero hoje no lugar de sempre. Sorria para mim. Um beijo.”

Passei ao lado de sua mesa e deixei ali a folha, com a mensagem virada para baixo. Parei na mesa do Nestor, bati um papo furado, dei uma piscada cafajeste para a Vânia, que me mostrou uma língua vadia, e voltei para a minha mesa. No escritório ninguém sabia do meu romance com a Leila, que já durava oito meses cravados. Acendi um cigarro, e olhei distraidamente em sua direção. Ela já esperava por isso, e abrindo um sorriso mandou uma grande gaivota branca pousar no meu ombro. (Quando estamos apaixonados achamos de ver bichinhos por todo lado, e mesmo eu, que acho isso uma grande viadagem, vejo peixinhos dourados riscando seus grandes olhos verdes gateados. Mergulho furiosamente no trabalho para não medir a passagem das horas. Mais um pouco e iremos, cada qual no seu carro, para um barzinho sossegado e de iluminação baixa, onde animaizinhos irão brincar sobre nossa mesa até entrarem no cio. Será hora de sairmos depressa, entrarmos num motel discreto, e ficarmos todos na mesma cama, eu, a Leila, gatinhos, coelhinhos, sapinhos, unicórnios, numa grande suruba a dois.).

Consigo evitar a tentação do seu olhar, mas não a de buscar por seu perfume, então passo próximo de onde ela se encontra e paro outra vez na mesa do Nestor, que aproveita pra me pedir vinte mangos emprestados. Seu cheiro não tem preço. Represento bem meu papel quando dou outra piscada safada para a Vânia. Ela deve pensar que é sério, porque de novo passa nos lábios uma língua incendiária, enquanto semicerra uns olhos de penumbra. Torno a voltar pro meu lugar. No caminho, um filhote de gaivota bica a minha nuca. Sobre a minha mesa uma folha de papel se destaca entre outras. Viro-a displicente, oculto a aflição de ver sua letra redondinha, e leio o que sai do seu coração:

“Também sinto tua falta, e já não me contento com teu olhar, que me deixa com as pernas trementes. Quero fugir pro nosso cantinho, ficar na nossa floresta secreta, mas hoje não dá. Outro dia te explico o por quê. Fique com meu beijo, meu abraço, meu pensamento.”

Dobro cuidadosamente a mensagem e guardo-a no bolso de trás. Acendo um cigarro, tento concentrar-me no trabalho, mas a gaivota pousada em meu ombro faz cosquinha no meu pescoço. Nestor aproxima-se da minha mesa, debruça-se e diz baixinho “Ela está a fim de você.” Me assusto, pergunto de quem ele está falando, ele mostra espanto “E de quem poderia ser? A Vânia, claro!”

A Vânia, claro. Está funcionando, ninguém desconfia de nada entre eu e a Leila. Mas a Vânia não me interessa, é só meu agá. Sussurro pro Nestor que mulher no trabalho é problema na certa, te vigia o dia inteiro, sabe dos teus telefonemas, das tuas olheiras e ressacas, não dá certo. Se eu pudesse, e talvez um dia eu possa, eu contava pra ele do meu amor pela Leila, que modificou minha vida, me fez outro homem, melhor, mais sincero, fiel. É a Leila, ou não será mais ninguém. Engulo meus pensamentos. Mudo de assunto “precisamos baixar os custos, talvez uma redução no quadro de funcionários”, ele se afasta dizendo que vai pensar no caso. Meu telefone toca, atendo, é a Leila “Eu te amo”, e desliga. Deixo passar uns minutos, ligo para seu ramal, ela atende, e quando vou dizer algo ela diz “Eu te amo” de novo e desliga. Se eu for mais uma vez até a mesa do Nestor vai chamar a atenção, alguém pode ficar ligado, ou vão pensar que eu sou viado, foda-se , eu vou! Ao passar pela mesa da Leila cometo um desatino, e paro. Debruço-me por trás de sua cadeira, finjo observar o que ela está fazendo. Minha mão roça seu braço, ela olha para cima, seu cabelo toca meu queixo, meu coração falseia, olho seus olhos, sua boca, o V entre seus peitos, e sigo em frente, passo direto pelo Nestor e vou pro banheiro. O espelho mostra meu rosto avermelhado, minhas narinas dilatadas, meu olhar febril. Água fria. Na volta não olho para a Vânia. Vânia não existe.

O expediente já terminou. Todos já se foram. Saio sem pressa. Quando as portas do elevador se abrem, ouço passos apressados atrás de mim. Viro-me. É Vânia. Descemos juntos. Na rua, ela provoca “Que calor! Um chopp ia bem, agora”, e passa a língua sobre os lábios sedentos. Não sei por que, mas a gaivota bate as asas, saindo do meu ombro, subindo, subindo... Olho o relógio. Nada pra fazer. Está mesmo um calorão. Afrouxo o nó da gravata, pego Vânia pelo braço e vamos os dois, com sede e sem assunto.

 
 

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