"A CISTERNA & A MORINGA"
Raymundo Silveira

Jamais conheceu a pobreza. O pai detinha o monopólio da distribuição de gás de cozinha para toda a região e fazia questão de que coisa nenhuma lhe faltasse. Nunca soube o que fosse uma frustração. Aquilo que o dinheiro não lhe dava, mandava buscar. Nada do que um ser humano pudesse desejar ou experimentar tinha passado em branco. Todas as viagens e mulheres. Todas as alegrias, as farras, vícios, perversões. E, no entanto, por ironia do destino, passava o tempo todo procurando alguém ou alguma coisa que o espantasse, que não tivesse gosto de fruta passada, que o sacudisse do tédio profundo, manifestado ainda na infância, e que o perseguia pela vida afora.

Até se casou, por imposição do velho, que desejava, ardentemente, netos. Mas só o que conseguiu foi dar descendência ao pensamento constante de que nada valia a pena. Foi indiferente aos filhos como tinha sido ao resto. Mania de doença tinha. Era sua única distração. E, num dos inúmeros check-ups, a que se submetia, por ano, acabou encontrando motivo para se preocupar. Sorrateiramente, um atrevido e galopante HIV lhe passara a perna. Não devia saber da sua fortuna, nem dos seus amigos influentes, pois se desenvolveu irreversivelmente, quase sem dar sinais, no breve intervalo, entre um exame geral e outro. Coisas da natureza humana. Talvez o corpo se rebelando contra a lassidão da mente. Era já uma luta perdida.

Qualquer outro entraria em desespero. Ele, pelo contrário exultou! Era ateu, portanto nem a continuidade da alma o enganava. O lado de lá inexistia. Escuro e insípido como cada um de seus dias arrastados e tediosos. No entanto, a perspectiva da morte, o momento insólito, único, jamais experimentado, da passagem, isso sim o fascinava. Finalmente uma emoção inusitada! A agonia, sentir a vida se esvaindo, o ultimo alento, expirar... Ah, delicia suprema, gozo indescritível... Seu coração se acelerava, vibrava, era quase feliz.

E uma animação frenética tomou o lugar do desânimo de antes. Preparar a festa. Esperar a festa. Tantas providências a tomar. A parte legal, testamento. Os herdeiros, cuidar que nada lhes faltasse, a educação... Até os filhos lhe pareceram mais interessantes. Verificar seguros, aplicações. Alguma coisa para os pobres, não custava nada, tinha tanto. E, o mais importante: preparar o esquema a fim de que cada momento dessa sua experiência final fosse documentado. Precisou enfrentar a resistência dos médicos, da direção do hospital, mas seu dinheiro era argumento irrefutável. Rico não é louco; é excêntrico.

Quando o momento da internação se fez necessário, ele, já alquebrado, conservava, no olhar, um brilho radiante. E perguntava ainda se estava tudo organizado, as câmeras, os microfones, a parafernália encomendada. E as testemunhas. Queria muitas testemunhas. Ia ser o seu show. O mais surpreendente show que já tivera seqüência nesse mundo sem deus. Quis ser informado de tudo que o esperava. De como seria a evolução desse final, que para ele era o momento supremo, o único importante. Não queria que o dopassem: qualquer dor se justificaria perante o êxtase alcançado.

E, na fraqueza já pronunciada do seu corpo, adormeceu. Doentes fantasiam, às vezes, coisas inexplicáveis, distantes de sua realidade, inúteis, fora da história. Então ele se viu, por que não? Numa família nordestina muito pobre. Era o dono da casa e queria comprar uma cisterna, pois após cinco anos de seca inclemente, a chuva andava rodeando promissora e ele não dispunha de um mísero recipiente para armazenar aquela água tão preciosa e tão rara. Arrancou dinheiro praticamente do nada. Vendeu a única coisa que possuía: uma nesguinha de terra, curta extensão do terreno de sua casa, além do diminuto quintal. Estava preservando para plantar um pequenino roçado de milho e de feijão.

Então cogitou: pra que roçado, se vamos todos morrer de sede, mesmo debaixo deste aguaceiro que está por cair? Melhor me desfazer destes vinte metros de terreno, a sucumbir de sede. Planto meu roçado no quintal, embora com prejuízo no volume da colheita. O que se há de fazer? Assim conseguiu dinheiro suficiente para um recipiente de amianto, capacitado a armazenar três mil litros de água. Foi um dia aparentemente feliz, naquela choupana estorricada e miserável. Preparou várias bicas a fim de captar o máximo de água, a cada chuva. E esperou. Mas embora as nuvens estivessem carregadas, naquele dia não choveu. No segundo, no terceiro, no quarto, também não. Já fazia quinze dias que adquirira a cisterna e nada. O “fazedor” daquela chuva devia ter embirrado com ele por causa do seu investimento mais do que tempestivo. Só podia ser isso. No dia seguinte, não havia uma nuvem no céu que prenunciasse um tempo promissor.

Saiu de casa sem tomar um gole de café. Entrou numa venda e bebeu sua revolta em cachaça durante o dia inteiro. Ao voltar apanhou uma marreta de ferro e desfez aquele inútil e miserável depósito em milhares de fragmentos. Acordou no dia seguinte quase sem poder se levantar, tamanha era a ressaca. Sentiu caírem pingos de água em sua rede. Chovia a cântaros. Correu para os lados da caixa d´água. Não lembrava nada do que havia feito, no dia anterior, sob a influência do álcool.

O sonho tinha se acabado. A manhã chegou, filtrando sua claridade oblíqua. O tipo de luz preferida pelos cineastas e fotógrafos. Ali qualquer ocorrência poderia ser um espetáculo emocionante. Era luxuoso o apartamento do hospital. Todo o luxo permitido, dentro dos preceitos de modernidade e assepsia. Apenas uma moringa entornada, no criado mudo, quebrava a ordem dos elementos. Os enfermeiros entraram, com toalhas, água, algodão para os tampões e tudo o que era preciso para, como de hábito, proceder à preparação do cadáver, cujo óbito ocorrera na solidão do sono, entre as três e cinco horas da madrugada.

 

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.