AMOR-PERFEITO
Luís Valise

 
 

Racional ao extremo, trazia na agenda todas as datas de aniversário de todos os parentes, amigos e mesmo simples conhecidos. Educado como poucos, ligava, ou ao menos enviava telegrama, cumprimentando pela data querida. Metódico, abria o livro recoberto de couro preto assim que chegava ao escritório, e disparava no mesmo instante mensagens sinceras e infalíveis. Naquela quarta-feira não foi diferente. Chegou cedo como sempre, tirou o paletó, arregaçou as mangas da camisa imaculadamente branca, abriu a gaveta, a agenda, e um grande sorriso. Estava lá anotado: - Aniversário de casamento. Sete anos. Comprar presente. Reservar restaurante. E motel.

Sete anos! Não sentira o tempo passar. Na verdade estava com Suely há já bem uns onze anos, a contar do início de namoro, noivado, essas coisas. E ainda sentia pela mulher a mesma ternura, a mesma atração do primeiro dia, do primeiro encontro. Jamais tivera interesse por qualquer outra mulher. Suely era sua outra metade, a melhor, a mais compreensiva, meiga, carinhosa, tudo que um homem poderia querer. Sentiu os olhos úmidos de emoção. Chegou a tirar o fone do gancho, mas achou melhor fazer surpresa. Decerto ela também estaria lembrando a data, como todos os anos, e, certamente, ao chegar a noite, estaria esperando por ele toda arrumada, perfumada, pronta para comemorar com indisfarçável júbilo a data mais importante de suas vidas. Nesses dias mandava as crianças dormirem na casa dos seus pais. Os avôs recebiam os netos com doces preparados especialmente para a ocasião, e ficavam na porta vendo o carro do casal sumir na esquina. Sete anos!

Na hora do almoço saiu para comprar um presente. Tinha que ser algo marcante, a demonstrar toda a sua condição de homem apaixonado, fiel e sincero. Entrou numa joalheria de prestígio. Avaliou demoradamente os anéis expostos, até decidir-se por um de ouro, com pequenos brilhantes rodeando um rubi ovalado, como um pequeno ramalhete. O mimo ficou ainda mais vistoso dentro da caixinha de veludo azul com interior em cetim branco. Mandou gravar a data no lado de dentro do aro. Saiu da loja direto para o escritório. A excitação deixava-o sem apetite.

No meio da tarde ligou para um restaurante especializado em comida tailandesa, reservou a melhor mesa e pediu que gelassem um bom champanhe. Depois buscou na internet o telefone do Motel Xamego, onde levara Suely na primeira vez em que estiveram juntos. Tinha sido inesquecível. Ela ainda era virgem. Ele foi cuidadoso, forrou a cama com uma toalha, mas ela não sangrou, apesar de ter gemido e se queixado bastante durante a penetração. Nem todas sangram, ele leu depois. Reservou a suíte “Fogo da Paixão”, que tinha sauna e piscina com hidromassagem.

Ao fim do expediente, antes de ir para casa, avisou a secretária que possivelmente se atrasaria no dia seguinte. E explicou, orgulhoso:

- Hoje eu e a Suely completamos sete anos de casado. A noite será pequena!

- Sete anos? Dizem que é a época da crise nos casamentos. Boa sorte.

- Isso é lenda, Carminha, e casamentos como o nosso resistem às lendas.

- É claro que sim, doutor Jorge. Parabéns. E parabéns à dona Suely.

Antes de ir para casa Jorge ainda passou num lava-rápido e deixou o carro brilhando. Parou na vaga ao lado do carro da Suely. Subiu pelo elevador de serviço. Entraria pela porta dos fundos para que fosse ainda maior a surpresa. Dentro do bolso do paletó o embrulho com o anel emanava um calor doce, e ao mesmo tempo pesado. Mal podia esperar pelo brilho nos olhos de Suely ao ver a pequena jóia. Colocou a chave na porta da cozinha e girou com cuidado para não fazer barulho. O apartamento estava às escuras e em silêncio. Acendeu a luz na sala. Sobre a mesa de jantar, um bilhete:

“Jorge, as crianças estão na casa dos meus pais.”

Jorge sorriu satisfeito. A mulher devia estar no cabeleireiro. Andou em direção ao quarto, soltando a gravata. Entrou, acendeu a luz, tirou o paletó, as calças, a camisa. Olhou-se no espelho. De frente, e de perfil. Precisava entrar numa academia. A barriga saliente denunciava a falta de exercícios, o sedentarismo. Durante esses sete anos de casado não fizera mais que trabalhar, e trabalhar, e trabalhar. Sentado. Claro que a barriga cresce. Mas, também, não falta nada em casa. Nem no apartamento da praia. Riu com gosto da própria piada: “O Ministério da Saúde informa – casamentos perfeitos provocam barriga.” Tirou o relógio, e ia para o banheiro quando viu outro bilhete sobre o criado-mudo. Outra vez a letra era da Suely:

“Jorge, deixe as crianças alguns dias com os meus pais. Quando você estiver mais calmo, pode ir busca-las. Estou embarcando com o Siqueira para a Grécia. Nós nos amamos há dois anos, e não deu mais para segurar. Ele também está deixando a Raquel. Acho melhor você não ligar para ela hoje. Obrigada por tudo que você fez por mim. Pelas crianças que você me deu. Quando elas crescerem, saberão compreender minha atitude. Você sempre disse que o nosso amor era a coisa mais importante na sua vida. Pois bem. O meu amor pelo Siqueira também é a coisa mais importante da minha vida. Sei que você, passada a raiva, me perdoará. E perdoará o Si. Ele sempre foi teu amigo, e sempre te quis muito bem. Foram muito bons, esses sete anos. (Você sabia que sete anos é o tempo em que surgem as crises nos casamentos? Claro, você não acredita em lendas. Talvez isso não passe mesmo de uma lenda.) Se cuide. E não esqueça de cancelar a reserva no restaurante, no Xamego, e também devolva o presente amanhã. Ou mande a Carminha na loja, caso você fique sem-jeito.

Um abraço. O Si também manda um abraço.

Suely”

Jorge não sabe quantas horas ficou ali, sentado na cama, lendo e relendo o bilhete. Analisou o caso por todos os ângulos. Reviu suas atitudes e seu comportamento durante esses sete anos. Não encontrou nada que o desabonasse. Tinha sido um homem cumpridor dos seus deveres. Deixou a cabeça cair sobre o peito, resignado. Abriu a porta do guarda-roupa. Numa estante, no alto, apanhou uma caixa de madeira. Abriu-a. O revólver preto jazia no estojo de feltro verde. Abriu o tambor. Seis olhos escuros e vazios olharam-no fixamente. Pegou uma cápsula. Sentiu o peso, passou o dedo sobre a cabeça de chumbo. Enfiou-a no tambor. Uma era suficiente. Andou em direção ao espelho. Tornou a examinar-se, agora com a visão turvada pela inevitável lágrima. Segurou a arma com firmeza. O estouro do tiro ecoou pelo apartamento. Uma fumaça branca, seguida pelo cheiro da pólvora. A bala estilhaçou o espelho justo na altura do barrigão, e esmagou-se de encontro a parede.

Jorge apagou a luz e se deitou, mas não conseguiu dormir.

 
 

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