A TEIA DE RENDA NEGRA
Tatiana Alves

Tomava agora mais um cálice de vinho, sabendo que já ultrapassara há muito aquele que constituía o limite do que seria próprio ou não. Esperava, como sempre, por ele, que não
se dava ao trabalho de respeitar a etiqueta, deixando-a freqüentemente mofando nos restaurantes, via de regra isolados, já que não podiam ser vistos juntos.

Conhecera-o no aeroporto, terra de ninguém, onde se tem a impressão de poder mudar o próprio destino apenas observando, nos monitores, os horários de embarque para os diferentes lugares do mundo. Ele assobiava baixinho, num compasso um tempo mais lento do que o arranjo original, a música de sua vida. Ela virou a cabeça, querendo descobrir quem com ela compartilhava do mesmo gosto e que, sem saber, invadira-lhe o mundo de seus devaneios. Descobrira-lhe a senha e adentrara, sem cerimônia, um território cada vez mais bem guardado, impenetrável. Tamanha ousadia não ficara impune. Trocaram telefones, risos, prenúncio das muitas outras trocas por vir.

Impaciente, em parte pelo atraso do amado, em parte pela melancolia trazida pelas recordações, consultou o relógio, jurando que só esperaria mais cinco minutos. Que viraram dez, quinze, vinte... Quando ele chegou, percebeu de imediato o que aquele atraso lhe custaria. Ela trazia os olhos borrados, indício claro de que tinha chorado. Tirou-a rapidamente dali, e seguiram para o local de sempre.

Deitado enquanto ela tomava um banho, deslumbrou-se ao ver a nova lingerie que ela havia comprado. Tudo bem, ela sempre fora lindíssima, argumento com o qual ele justificava a fraqueza, e assim a vinha enrolando há quatro anos. Mas naquele dia ela parecia especialmente bela. Irresistível, ele diria. Talvez se ela lhe pedisse hoje, ele resolvesse de vez a situação. Não queria se separar, mas também não podia mais
viver sem ela.

Mas ela não lhe pediria nada. Cansara-se das promessas vãs, tão falsas quanto o anel que ele lhe dera no Natal passado. Amaram-se como nunca naquela tarde, com a urgência do desejo e com a calma da derradeira vez. Sim, porque ela planejava deixá-lo. Tencionara que esta fosse a despedida, e nem dessa vez o canalha chegara na hora...

Com a negligé negra e com um jeito sacana no olhar, ela dirigiu-se a ele. Parou, no meio do caminho, para se servir de mais uma taça de vinho. Ele tentou impedi-la, argumentando
que ela já bebera demais, que ia passar mal... Ela então esbravejou, dizendo que para ele não faria a menor diferença, que as ressacas ela costumava curar sozinha, já que ele nunca
estava mesmo por perto quando ela precisava, como da vez em que ela abortou, por insistência dele, o filho que esperava. E em sua revolta, tão maior porque misturada à mágoa e à paixão, ela quebrou a garrafa de vinho e o feriu. A embriaguez não lhe tirou a capacidade de perceber que o matara. Ajoelhando-se, colocou-lhe a cabeça no colo, ninando-o, como teria feito com o filho de ambos. O sangue misturou-se à renda negra da lingerie, que parecia uma imensa teia. Como a aranha, espécime que executa o macho após o acasalamento, ela pusera fim à angústia de esperar que ele ligasse no dia seguinte. Entretanto, havia uma irônica diferença: nem viúva-negra ela era, já que ele nunca fora,
realmente, seu.


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