A CILADA
Kátia Rodrigues


No quarto fechado, completamente escuro, ouviu o barulho do dia, que já ia longe. Hoje era dia de feira. Noutros tempos acordava logo que os caminhões chegavam, trazendo as barracas para serem montadas. Mas isso foi há muito tempo atrás, quando o sono era leve. Agora já não sonhava, e nem sono tinha.

Adotara, descaradamente, o uso de tranqüilizantes, que sempre fora contra. Então se convencia que um só comprimido, meia hora antes de deitar, já de madrugada, não faria mal nenhum. Não contara ao médico que tomava o comprimido com uma dose de whisky, a última da noite, para relaxar. E logo sentia as pálpebras pesadas e, distante de tudo, só acordava num salto, algumas horas depois, tentando lembrar onde estava.

No começo os amigos ligavam, apareciam, insistiam para que ficasse com eles por um tempo. De jeito nenhum! Imagina, deixar minha casa? E se ele ligar, ou aparecer? Tinha certeza que ele voltaria. Mas o tempo passou e nenhuma notícia. Um dia acordou e resolveu dar um basta naquilo. Ligou para o trabalho e avisou que não ia. Não ia mentir, contar histórias. Simplesmente falou que não ia mais, que estava de saco cheio de tudo. Dois dias depois, ligaram perguntando se estava melhor. Estava, respondeu. Tinha feito uma limpeza nos armários, jogado muitas coisas fora, e sentia-se aliviada; agora iria arrumar a vida, e o emprego não fazia parte dos seus planos. Desligou o telefone, sem dó nem piedade. Não tinha pena de si mesma. Foda-se o mundo, pensou alto.

Passou uma semana na cama, sem banho, sem lavar um copo. Na geladeira não tinha mais nada, nem água. Olhou a bagunça em volta. Mas não arrumo é nada, disse em alto e bom som! Voltou ao quarto, tirou a blusa, a calcinha e olhou-se nua no espelho. Já tivera melhores dias. Observou-se atentamente refletida de corpo inteiro. Depois abriu a gaveta da cômoda. Procurou na do lado, onde encontrou as jóias, guardadas no estojo. Correu os olhos sobre elas, e escolheu a corrente de ouro antigo com a medalha de Santo Antonio, que colocou no pescoço. Olhou-se pela última vez.

Foi até a janela, abriu as cortinas, levantou a persiana, em seguida abriu o vidro. De pé sobre o parapeito, antes de saltar, deu-se conta que o amor pode ser uma cilada.

 

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