ÁGUAS
Vera do Val


O velho trinca os dentes e verga o corpo , quase mergulha beira da canoa abaixo no esforço de içar a rede. Vem quase vazia, um siri mole ainda cai na água. Ele solta um suspiro, vai que se conforma, não há muito mais a esperar naquela soalheira toda que lhe arde os olhos, já meio cegos, e deixa a boca babona quase grudando. ... No meu tempo ... pensa , com raiva ... não tinha rede que me recusasse peixe nem quenga que não me alumiasse.... apanha os remos e as costas brilham escuras e lanhadas ... força .. .força... lembra do cais antigo quando varava noite em roda de jogo, cuspindo no madeirame, tocando o barco antes do sol e recusando peixe que não fosse marrudo ... daqueles que brigam pra morrer , estrebucham e te olham, zangados, com o olho brilhante que viu a iara no fundo do rio... isso não tem mais, a Iara se foi pras outras águas depois que abriram o porto e alumiaram tudo, coisa de gringo safado ... hoje essas lascas de peixe que não dá gosto ... te olham com cara de pecado ... de culpa ... arrego... não pelejam, não falam, cansados como eu ... O velho não ria mais tinha tempo, perdera o gosto junto com os dentes e com D Maria das Dores, que se fora também, em uma noite de chuva, daquela que entra pela porta a dentro, molhando o corpo e enxovalhando a alma .... ela foi sem gemer a pobre, nem isso queria mais ... essa sina de vida que vai encolhendo a gente entra dia e sai dia ... se vai ficando pequeno, fala com o Negro e ele não responde mais .... tá surdo pra velho como eu, sem caricia de cunhã e nem riso de moleque. A canoa segue mansinha, que da pouca força dos braços e da leveza do peso, vai triscando a água, sem marola e nem chiado. Vai como se conhecesse o caminho, ela também cansada daquela faina diária, carcomida nas beiras, como se lamentasse o tempo, embalada pelo parolar do velho.

No casebre escuro e úmido, logo na beira d’água, ele mexe nas panelas, escalda o pouco peixe resmungando baixinho,ora reza,ora choraminga. Já está na hora ... passando ... Não tem mais pernas pra muita andança, nem riso pra pouca graça. A casa, como a vida, espedaça-se desde que D Maria se foi. Cai-lhe caliça na cama e na alma, a passarada entra pelo telhado e lhe faz titica sobre o fogão ... Ela amava passarinho, lembra. Passarinho e o véio dela ... Com olho de saudade ele roça os dedos na rede grande, agora inútil, pendente dos ganchos enferrujados, testemunha inconteste de tempo melhor, já perdido, já passado, tempo em que embalava, intumescida, o arfar do velho e o gemer de D Dodó, cheirosa e cheia de dengos.

Filhos tiveram quatro e três deles o rio levou, ciumento, em noite escura e de vento forte.O quarto, Rodamundo, rapagão sacudido, se embrenhara em busca de um mundo novo, pelos lados do Uruí, e dele nunca mais se tivera noticia.

D Dodó se conformara ... a gente ta aqui pra isso, um dia vai ... um dia vem .... Mas quando a água subia e o rio, prenhe, vazava nas margens, ela lembrava do filho. Dele já tinha esquecido o rosto e o andar , só guardava, queimando dentro do pensamento, os olhos escuros do curumim esperto, que um dia lhe mamara os peitos, e ouvia a voz da madrinha, brava, que aquilo não era nome que se desse pra filho, isso traria má sorte, menino sem benção tinha o destino traçado ... a gente bota filho no mundo pro que Deus quiser ... roda filho... roda mundo ... procura ... procura... O velho falava pouco e ela imaginava que ele tinha esquecido depressa, nem sonhava, a pobre, que, nas noites de lua, quando a água corria, serena e faladeira, ele se perdia a conversar com o rio que lhe trazia noticias, e lhe contava as proezas do moço que estava além , muito além, em margens distantes, cumprindo a sina do nome e das agonias do rio .... Nunca mais ... nunca mais ...

O velho apaga o fogo e vai puxando a cadeira capenga, arreda os restos de sobre a mesa, abre um espaço para o prato esbeiçado, a farinha e a pimenta. Cabeça baixa, mastigando como pode, cuspindo aqui e ali, engasgando com um ardor mais forte, soluçando com a secura da vida.

A noite já está alta quando ele arma a rede no oitizeiro, o peito magro chiando, maldita tosse que lhe come o fôlego, armadilha da vida e do tempo. Estira o corpo seco, embala os olhos no marulhar do rio e se põe a falar sozinho. Conta causo, resmunga e vai rezando, essas rezas babadas de espera, reza misturada com praga, reza de velho que espera a morte.


fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.