1968
Márcio Ribeiro

A mulher estava sentada em frente ao portão de desembarque do aeroporto. O retorno de seu marido parecia-lhe tão improvável que ela já havia se acostumado com a idéia de sua morte. O telegrama recebido um dia antes, trouxe-lhe à tona um turbilhão de lembranças há muito esquecidas. A prisão. O exílio. A promessa de volta. A espera sem fim. Até hoje.

O avião aterrissou, barulhento, e a mulher arrancou os óculos escuros jogando-os dentro da sua bolsa. Os olhos, fixos na escada de desembarque e secos de tanto chorar, já não esboçavam nenhuma reação. Os passageiros desciam um a um. Uma mulher gorda. Um senhor grisalho. Antônio. Um sorriso de alívio iluminou-lhe o rosto quando ela viu o marido descer. Espantosamente com o mesmo rosto de antes. Parecia não ter envelhecido um
ano sequer desde que se foi. Ele a viu e sorriu. Enquanto descia as escadas correndo esbarrou no senhor e na gorda. Largou as malas no chão e abraçou a mulher. Ela sentiu-se quase desmaiando ao tocar a pele do marido, ao beijar o seu rosto.

- Eu não prometi que voltava? - falou o marido.

A mulher, muda, levava-o até o carro pelo braço, como se fosse uma criança satisfeita.

O dia passou rápido, como sempre ocorre nos momentos de felicidade. A mulher não pediu explicações ou esclarecimentos. Apenas procurou aproveitar cada momento da presença do marido ao seu lado.Bem mais tarde, na cama, depois de uma tão sonhada noite de amor, o marido explicou que precisava ir embora no dia seguinte. A mulher ainda tentou protestar e levantar-se, quando ele sacou do bolso da calça dobrada em cima do criado-mudo, um papel dobrado e o estendeu para a sua esposa.

O escritório do ex - delegado ficava no centro da cidade. Um ótimo esconderijo para aquele que tinha sido um dos mais cruéis servidores da ditadura. As inúmeras atrocidades do seu passado foram lavadas com o novo cargo de uma empresa conceituada. Ajuda humanitária. Ele nunca sorria da ironia da situação, já que parecia também ter se esquecido do seu passado. Cada novo dia de trabalho parecia apagar as feridas causadas pelos choques
elétricos, surras de toalhas molhadas e corpos escondidos, muitas vezes no quintal de cimento da própria delegacia. A porta bateu com força e um homem alto, de bigode, entrou:

- Quem deixou o senhor entrar? - perguntou o ex-delegado.
- Não se lembra de mim, Doutor? - os olhos do homem era opacos.

O passado voltou-lhe em um único e poderoso flash.

- Isto não pode estar acontecendo.
- Eu te pedi, Doutor. Eu implorei.Você sabe que nunca tive culpa de nada.

O homem pareceu não ouvir as últimas palavras e a porta fechou-se com um golpe. Quem passou pela rua naquele momento pôde ouvir um grito seco e desesperado de alguém que pedia pra não morrer.

A mulher, nua na cama desde a noite anterior, lia sem parar o papel em suas mãos. Uma folha única. Velha. Dobrada ao meio em várias partes. O atestado de óbito de seu marido.



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