"CASTIGO SEM CRIME"
Raymundo Silveira

 

O castigo era certo. Só havia dúvida quanto ao tamanho e à natureza da pena: De suspensão a expulsão sumária. Se fosse levada em conta a gravidade do “crime”, hipótese mais provável. O terror era inversamente proporcional à imaturidade dos doze anos. E aumentava pela decepção que levaria para casa. Para meus pais eu era um modelo de virtudes. A única esperança que lhes restava. O sacrifício para me mandar estudar naquele internato, podia ser medido pela quantidade de renúncias a que se submeteram. Inclusive a pior delas, que foi me afastar do seu convívio. Sabia o quanto esperavam de mim. Assim imaginava que aceitar o filho de volta, expulso como um cão, equivaleria, naquela idade média do século vinte, a uma dor não muito menor do que receber, nos dias de hoje, a notícia de que morrera vítima de overdose.

Era comum o diretor chamar os alunos para conversar no seu escritório. Por isso não desconfiei. “Como estás?” “Muito bem, senhor”. “Pois eu acho que não!” As janelas escancaradas. Uma brisa morna arrefecia à media em que ele falava. E esfriava o meu corpo. E gelava a minha alma. Noite de lua cheia e céu estrelado. Sem nuvens no horizonte. Mas, das muitas que vieram depois, nenhuma pareceu tão negra quanto a que instantaneamente se formou. Nunca, pela vida afora, me senti tão culpado.

Saí daquele escritório um prisioneiro deixando o tribunal depois de ouvir a sentença de morte. Atravessei os corredores que levavam ao pátio do colégio,como se caminhasse pelo interior da Torre de Londres em direção ao local de execução das três rainhas inglesas. A parca iluminação, a cor de osso velho das paredes, o som fúnebre das minhas passadas no assoalho de tábuas e a angústia, davam a impressão de que aquela seria a minha derradeira caminhada.

No pátio, o clarão do luar se restabeleceu. Porém, aquela luz, longe de me fascinar, como era costume, fez-me sentir transportado para as histórias de terror que ouvira, quando criança. Esperava ser surpreendido a qualquer momento por lobisomens, mulas sem cabeça, duendes e fantasmas. Nenhuma destas fantasias me torturava tanto quanto o complexo de culpa, que carregava na consciência de chumbo. Nem como o remorso antecipado que ficaria marcado no meu espírito, como ferro em brasa, para o resto da existência.

A saúde e o vigor da quase infância trouxeram-me o sono. Mas o despertar, podia ser comparado ao sofrimento de um prisioneiro que acaba de receber a ordem do carrasco para se vestir e caminhar pelo corredor da morte. Ou ao de um assassino na manhã seguinte do dia do crime. De um “Raskolnikoff”. Com doze anos de idade.

Tudo naquele dia, pareceu uma sucessão de amarguras. No semblante dos colegas um misto de prazer e de censura. Os alimentos tinham o sabor de jiló pré-amadurecido. Nas salas de aulas, a voz dos professores soava como tétricos “De Profundis” rezados pelos sacerdotes encarregados de prestar a última assistência religiosa aos sentenciados.

Enfim, veio a pena máxima. Fui mandado embora. Ao chegar em casa, em nenhum momento me passou pela cabeça dizer assim: “Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho.”

E no entanto, o meu pai disse aos seus servos: “Vão depressa, tragam a melhor túnica e o vistam com ela. Ponham-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Tragam o novilho cevado e o matem. Vamos comer e festejar. Pois este meu filho estava morto e tornou a viver. Estava perdido e foi reencontrado!” E Começou a festa.

 

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