MUNDO CÃO
Caio Beraldo
 
 

Não entendo o que o sujeito diz. Diz não, resmunga. Mas não é preciso ouvir as palavras, já que a mão estendida em minha direção já diz tudo. O rapaz me parece deficiente mental, mas curiosamente a cada mês está com roupas e tênis novos, e de pouco em pouco aparece com a roupa oficial de um conhecido time da capital. Eu o vejo todos os dias quando chego ao trabalho. Ele faz "rodízio" em todos os semáforos do Largo do Socorro.

Depois de meio dia de trabalho saio com os colegas para almoçar. Vamos a um bom restaurante, o preferido pelas pessoas que trabalham nos escritórios da região. Na saída, uma senhora, uns cinqüenta anos, segura o braço das pessoas com a mão direita, e com a esquerda faz um movimento em direção à própria boca. Não diz mais nada. E precisa? Alguns ajudam, outros ficam revoltados por ela tê-los tocado. Ela está ali todos os dias.

Às seis horas parto para buscar minha namorada no trabalho. Pego a Marginal Pinheiros inteira, congestionada como sempre. Nas laterais da pista ambulantes correm entre os carros para vender amendoim, pipoca e refrigerantes. São as únicas pessoas em São Paulo que torcem pelo tráfego, para que haja algum acidente que congestione ainda mais o medíocre sistema de trânsito. Conheço quase todos de rosto. Já comprei seus produtos. Alguns são desonestos.

Entro na Praça Panamericana. No primeiro semáforo há uma senhora, sempre com uma criança ao lado, pedindo esmola. Se não consegue uma moeda, pede um cigarro. No mesmo farol há também uma adolescente grávida, que além de pedir dinheiro flerta com os motoristas e pedestres. Ainda ali há um homem em uma cadeira de rodas motorizada, que vende balas e chicletes, além de meninos que fazem seus malabarismos.

O sinal abre, ando alguns metros e paro de novo no farol seguinte. Um homem que tem uma perna atrofiada passa de muletas olhando nos olhos dos motoristas. Faça chuva, faça sol, ou pode até nevar que todos os dias ele estará ali, de bermuda, mostrando pra todos o que o impede de trabalhar, tentando causar nas pessoas algum sentimento de culpa ou pena.

Novamente ando apenas alguns metros após a abertura no farol, e paro novamente. Desta vez é um homem musculoso em uma cadeira de rodas, com uma bola de basquete na mão. Ele faz diversos movimentos do esporte e depois passa por entre os carros para pedir uma contribuição. Ao final, se agarra à porta ou ao retrovisor de algum carro, para voltar de "carona" até seu ponto de partida.

- "Fala com um aidético, senhor?". O homem, com uma só frase, já demonstra todo o preconceito que sofre diariamente, e aproveita para pedir uma contribuição em dinheiro ou roupas e mantimentos para o Lar dos Aidéticos.

Outro dia em uma travessa da Bandeirantes meia dúzia de crianças vieram pedir esmola no farol. Noite fria, estava com os vidros fechados. Elas passaram então ao ataque: batiam com as palmas das mãos em meu vidro, gritando "tio me dá um dinheiro". Atrás delas, sentado, estava o pai ou "responsável", sorrindo. Por sorte o sinal abriu logo, pois aquela situação conseguiu me irritar profundamente. Era óbvio que aquele homem havia ensinado aquilo às crianças. Acho que mais alguns segundos e eu teria descido pra tirar satisfações.

O uso de crianças é uma prática comum. Pais e mães levam seus filhos pequenos aos faróis para gerar o sentimento de pena. "Se não for pra mim, dá um dinheiro pro leite do menino". Há algum tempo estava na fila de uma das baladas da Rua dos Pinheiros. Era tarde, quase meia noite. Um menino de no máximo sete anos vinha a cada cinco minutos insistir pra que eu comprasse uma bala. Quando estava quase cedendo, percebi que ele sempre atravessava a rua para conversar com um homem, que apontava para as pessoas, passando as "dicas" de como e pra quem vender. Novamente, quase arrumei confusão com o sujeito.

São diferentes modalidades e técnicas para tentar fazer com que as pessoas que têm carro ou que saem à noite sintam-se culpadas. E funciona! A maioria das pessoas sente-se em débito por estar em melhor situação que aquele que pede esmola, mesmo vendo todos os meses seu salário emagrecer devido a taxas e impostos, e mesmo sabendo que uma simples esmola não vai diminuir o abismo social que existe não só nesta cidade, mas em todos os lugares. Seria muita pretensão minha tentar dar a solução para este problema neste modesto texto, mas certamente a esmola não é o caminho.

É... o mundo é cão! E não há ração para todos!

 
 

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