CARACÓIS PÚRPURA
Eduardo Prearo
 

I

Pablo Antonio não cumprimenta ninguém, nem mesmo os conterrâneos que vivem a conversarem pelas calçadas da Rio Branco. Lhe faria bem esquecer-se desses conterrâneos, ele tem certeza disso; lhe faria bem esquecer que é peruano. Desde que Dora, a esposa, e o filho dele morreram, Pablo não é mais o mesmo, perdeu o elã. Pablo está há dois anos e meio no Brasil e trabalha na polícia, é o carcereiro da ala dos endividados, dos malandrinhos que não pagaram as contas. Não tem medo de nada nem de ninguém. Dora pariu o filho e depois morreu, exalou seu último suspiro ao lado de Pablo, nas montanhas frias de Machu Picchu. O filho dele teve de ser sacrificado e Pablo nunca soube exatamente o porquê. O peruano está cuidando mui bem do novo amigo, Maxim Aureliano, um prisioneiro de ascendência italiana que se recusou a pagar o que devia a um banco. Maxim e Pablo, amiúde jogam buraco com até quatro baralhos, pois nesta época de estranha inocência, as celas andam esvaziadas; época em que a lei seca, por exemplo, sofre variações por conta de cada comerciante.

--- Senhor Maxim, o senhor tem trinta e sete anos, certo?

--- Pensas que tenho mais por causa da calvíce ou...bom, vê se tira logo o rei de espadas pra fazer mil pontos, sei que você necessita dele.

--- O senhor devia ter terminado a faculdade. Daqui a pouco me obrigam a pôr um mendigo estressado na sua cela e o senhor não vai gostar.

--- Vai saber. Mas terminar a faculdade? Neste instante? Mesmo se eu estivesse solto, jamais teria dinheiro. Põe na sua cabeça que pobre é pobre, que pobre não tem futuro.

--- Não pode falar nada, né senhor Maxim! Ah, por obséquio, o senhor sabe quantos Maxins Aurelianos existem no país? Pelo menos uns cem.

--- Quem nasceu para inexistir foi esta população.

--- Calma, Maxim. Até mais, amigo.

Maxim acende um cigarro paraguaio e lembra-se do próprio aniversário: completará trinta e nove primaveras no início de outubro. Como o tempo passa rápido e ao mesmo tempo não passa! Maxim tem a horrível impressão de que muita gente invoca homossexualismo quando o vê. Tolice, alucinação, afinal Maxim não é o espelho de ninguém. Aliás, seu grande sonho é ser o maior dentre todos os homens, excetuando Jesus, obviamente. Maxim jamais pensou em se casar, jamais pensou em constituir uma família. É vaidoso, talvez até mais do que aqueles que se dizem metrossexuais. Quanta impaciência, agora: esperar Pablo Antonio decidir que ele deverá fugir. Está subentendido que Pablo deseja isso, deseja que o amigo fuja. Maxim rearruma a cela pela quarta vez e dorme. Acorda assustado. A insônia chegou braba. Porém, após vinte minutos, Maxim volta a dormir e sonha com algo...num cochilo de dez minutos...

--- Por favor, é neste bar aqui que tem nordestino que tem requinte pra perseguição? Eu soube que eles contruiram o Martinelli.

--- Não, não. Os que têm requinte para perseguição não construiram o Martinelli não. Quem construiu esse prédio, tijolo por tijolo, misturou a cal no cimento, foi o nordestino do sertão.

Maxim acorda. A janela quadrada torna tudo sem sentido. O sol nascerá daqui a pouco. Maxim tem certeza que Pablo Antonio vai sugerir a ele uma fuga. Telepatia?

--- Surpresa! Apresse-se, pegue os trapinhos aí. Deixe-me entrar na cela. Aqui está, aqui está, pronto. Vista esta roupa de padre.

--- De padre?

--- Olha só...não sabia que o coroa era religioso! Nos meus vinte e dois anos de vida nunca vi isso.

--- Isso o quê? Que falta de imaginação, Pablo Antonio! Depois que eu fugir e tudo for descoberto, botarão a culpa em você.

--- Sou o melhor carcereiro desta região, não profetize assim! Não me amola, vai. Agora vista-se. Pensam que há um padre aqui embaixo, não me pergunte como.

--- Você e seus mistérios, hein garoto! Sabe que eu poderia ser seu pai?

--- Pense que eu é quem poderia ser seu pai. Tome, pegue aqui este papelzinho, aí está o endereço. É para lá que deve ir, fica na República, Madalena o aguarda.

--- Madalena é sua gata?

--- Madalena? Gata? Tô fora, sinto muito. Maxim, logo estará tudo bem.

II

O apê de Madalena não é prosaico por causa de um quadro de Miró que ela possui. Madalena tem mais de quarenta anos e é do signo de aquário, uma macaca de aquário. Adora arte e raramente abriga gente que não seja estrangeira em sua casa. Para Madalena, o valor da vida humana nunca deve ser descartado. Contraditória? Nem tanto. Ela acha que não tem preconceito algum. Ídolos? Só tem um, aliás, uma: Prasanta Flores, a emergente do Guarujá que hoje é capa de revista, que hoje é estrela do PQ.

Madalena será obrigada a acolher por alguns dias um amigo de Pablo Antonio, um senhor chamado Maxim. Ela deve um favorzinho ao peruano. Maxim, o fugitivo chegará hoje, logo hoje, glotera ela. O salão está cheio, a marca do biquíni ameaça sumir, o pôr-do-sol tem tons de rosa-escuro. A última moda em São Paulo é cabelo azul para homens; até executivos Madalena tem atendido, sendo que todos estão ansiosos para terem cabelos azuis. Éhhh, os homens estão admitindo que possuem uma miríade de desejos desconhecidos, e o consciente, como alguém já disse, é somente a ponta de um iceberg.

Praça da República, 425. 34º andar. Apto 3408. Procurar pela senhorita Madaleine.

Maxim atravessa o viaduto Santa Ifigênia vestido de padre, depois pára defronte de um camelô que toca música alta e inicia uma dança esquisita, espantando o populacho. Não sabe ainda por que lhe deu vontade de fazer isso. Todavia, apesar do susto, muita gente dançou antes que ele dançasse, riu antes que ele risse. Por vezes, pega-se a população rindo de coisas absolutamente sem sentido, a alegria fica no ar como nuvem invisível, quem passa e a capta, começa a pular ou começa a se enervar dramaticamente. Já na Praça da República, Maxim resolve entrar numa farmácia, está com muito pouco dinheiro, mas precisa de um sabonete. Sai, não dá nada a um pedinte e se sente culpado por isso. Talvez pegue um dia só para pedir também, mas não sabe se terá coragem. Pensa nos cobradores, se eles o virem, estará liquidado. Os cobradores brasileiros têm o QI 264. Maxim chega ao prédio onde mora Madalena por volta das vinte horas. Ele preme o botão 3408 e aguarda. Maxim é medroso, tem medo de elevador, tapa os ouvidos mas sobe. Madalena pode-me auxiliar a escapar desses terríveis cobradores, a escapar da justiça!, pensa. São Paulo é meio mística; Maxim sente como quem não tem ainda dezoito anos para viver nela plenamente. Talvez as metrópoles do mundo sejam amiguinhas. Bling-blong.

--- Oi, Madah, sou o Maxim. Você é linda!

--- Opa, Madah não, Madah não. Mas entra, vai.

--- Fugi da cadeia, os cobradores puseram-me lá e...

--- Deviam ter te dado um emprego. Eu sei tudo. Fique a vontade. Vou confessar uma coisa: também sou uma endividada, ou seja, uma marginal.

Dois meses depois...na manhã de domingo.

--- Pablo Antonio vai me tirar do país, não vai, Madalena? Não aguento nem mais falar minha própria língua. Minha foto saiu num jornal aí na semana passada. Dizem que sou de média periculosidade. Quero uma peruca nova, mas está uns quinhentos dólares.

--- Maxim, dá uma olhada na capa deste CD. Bárbara, não?

--- É de artista do tropicalismo?

--- Não. É de artista inglês, é de gente rica, sem dívida, gente que mourejou pra caramba! Você não vai vir comigo ao supermercado, né? Fique aí, vai ficar lá do meu lado, com vontade de fumar, fazendo gracejos, procurando ser simpático, mas com um tédio terrível!

E de noite, noite escura, Maxim resolve se embriagar...

--- Maxim? O que você está fazendo? Pare de beber.

--- Não.

--- O que aconteceu? Policiaram seus suquinhos na hora do almoço, foi?

--- Não, quero morrer. Estou cansado de não fazer nada, de ser esse inútil. Os cobradores irão atrás de toda a família, são justiceiros implacáveis.

--- Você nem existe, velho! Arruma um emprego, acorda mais cedo!

--- Mas há gente pela esquina a mando dos cobradores, espionando-me...

--- Que nóia, biba!

E de madrugada, madrugada quente, Maxim vomita e perde a consciência. Pela manhã, Madalena o encontra na sala, desacordado. Leva-o à Santa Casa e o diagnóstico é coma. Maxim está num coma e não sabem se é irreversível. Um dos médicos pergunta a Madalena se o indivíduo, no caso Maxim, é o irmão de alguém que ele conhece. Madalena nega. Esses marginaizinhos, diz o médico, coçando o escroto, parecem afeminados. Esse até que é bonitinho.

--- Quando ele acordará, doutor?

--- Talvez nunca. Se for biba, ótimo.

--- Não descrimine, doutor, por favor! O homem foi pra cadeia por causa dos cobradores! Ele devia, sabe...

--- A senhorita está exagerando.

--- O destino dele então ainda não se cumpriu, tadinho!

Após três anos, Maxim recupera-se. Acorda numa bela tarde com alguém lhe observando. É um cobrador? Um psiquiatra? Onde está Madalena, onde está meu amigo Pablo Antonio? Maxim assusta-se.

--- Quem...é...é...o...senhor? É...o...todo eterno inocente cobrador?

--- What?

--- Are you a stanger?

--- Iahh...e eu falar um pouco de português, ouviu?

--- Você é por acaso aquele homem em pessoa?

--- Iahh...Senhor Maxim Aureliano...

--- Everbody calls me Maxim.

--- Vim da Califórnia para convidá-lo para um teste em Hollywood. O senhor nos interessa. Ficará rico.

--- Nossa, eu, um artista, um ator? Desprezível sou de tão tímido e... Mas Sr...

--- Bergman.

--- Sr. Bergman, qual será o título do filme?

--- Traduzindo...hum...Meu nome é ninguém.

--- Terei de usar peruca, não é Bergman. Não existe artista calvo. Uma peruca azul, que tal?

--- Peruca com caracóis púrpura, está bem?

--- Está. Obrigado, Bergman.

--- Not at all.

 
 

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