O TELEFONEMA
Luís Augusto Marcelino
 

Liguei para Angélica. "Deixe seu recado!" Desliguei. Odeio esse negócio de deixar recado. Odeio celular e suas musiquinhas engraçadinhas chamando a atenção de todos, provocando olhares sentenciosos e tossidas cínicas. "Cof, cof... (será que esse sujeito não se toca de que aqui não é lugar de deixar tocar celular?)" - suspira alguém, sempre. Combinamos que eu ligaria por volta do meio-dia. E eu liguei exatamente nesse horário, por que ela não atendeu? Então que se danasse! Meu embarque estava marcado para as 4 da tarde. Não era um embarque rumo a Paris ou Milão ou a qualquer outra cidade européia. Muito menos a Nova Iorque, porque odeio cachorro-quente e arrogância (e, na verdade, esses lugares são para a burguesia paulistana, não para um sujeito duro como eu). Meu destino: Cuiabá, no Mato Grosso, via rodoviária do Tietê. Dizem que lá é um inferno. Muito calor, uma umidade relativa do ar do cão, uma balbúrdia generalizada nas ruas centrais: parece que todas as ruas são a 25 de março, apinhadas de muambeiros e gente querendo comprar quinquilharias. Por que ela não atendeu?

Eu e Angélica nunca conseguimos chegar a um acordo quanto a nossa vida em comum. Foi aí que resolvi dar um ultimato:

- Vai comigo para o Mato Grosso?

Até então ela não tinha respondido. Deixar tudo, sua família, seu emprego, seus amigos, sua poodle mimada. Largar tudo e ir comigo para um lugar tão distante, talvez isso nunca tivesse passado pela cabeça de Angélica. "Não sei..." No momento em que fiz a pergunta talvez fosse melhor que ela tivesse respondido que eu estava louco e que jamais ela me seguiria para qualquer parte do mundo. O que me consumia, o que me deixava fulo, o que arrancava impiedosamente o meu humor, era o fato de ela não se decidir. Se fosse no começo de nosso relacionamento tenho certeza de que ela não pensaria duas vezes. Sumiria do mapa, nem daria satisfações para sua poodle. Mas esse negócio de relacionamento prolongado é meio complicado. As pessoas tendem a pensar mais, a hesitar, ficam inseguras, mediocremente inseguras. Quer ir ou não quer? Não sei, não sei...

Mais uma tentativa. "Oi, você ligou pra Angélica. No momento não posso te atender. Deixe seu recado que eu ligo assim que puder." Que merda! Meio-dia e meia... já tomei três cafés. Em outras épocas eu já teria acendido uns três cigarros, pelo menos. Mas parei de fumar há duas semanas. Deve ser por isso que estou tão impaciente. Não consigo falar com Angélica; meus pulmões ainda clamam por um pouco de nicotina. Dentro do bar há alguns bêbados. Não é uma novidade, não se poderia esperar encontrar um monte de pastores evangélicos num botequim como aquele, bem no Centrão, onde o ar poluído se mistura com um odor de podridão de esgotos, de frutas e restos de comida que apodrecem nas lixeiras ou mesmo nas calçadas. Então aqui há bêbados e três mulheres maquiadas com cores fortes que desconfio que sejam moças de utilidade pública. Há também algumas dezenas de maços de cigarro olhando pra mim, me provocando, me convidando para para uma conversa prolongada. Talvez pra rememorar as coisas boas e ruins que aconteceram nos últimos anos - sempre acontecia isso quando éramos companheiros. Quem sabe lembrar do dia em que vi Angélica pela primeira vez, ali tão discreta, tão calada, tão isolada do mundo, naquela biblioteca imensa, freqüentada por uma porção de gente de toda a espécie. Poucos jovens, dentre eles eu e Angélica. Havia fartos lugares para sentar mas, na época, não sei bem por quê, resolvi escolher a mesa onde ela estava. Eu nunca fui de freqüentar biblioteca pelo puro e exclusivo prazer de ler. Aliás, leitura não era o meu forte. Gostava de outras coisas. Lia o que me apetecia, mas naquele dia fui tirar cópias de um livro de um autor alemão que sinceramente não lembro o nome. Era pra fazer uma merda de trabalho da faculdade e fui lá apenas para tirar as malditas cópias e sair voando para dar um pulo no cinema. Quando foi isso mesmo, meu Deus?... Não sei, três ou quatro anos atrás, se eu não estiver enganado. Não sei por que aquela figura absurdamente taciturna chamou minha atenção. Usava roupas discretíssimas, uma tiara branca prendendo a franja dos cabelos lisos, um jeito assim de mulher tímida, daquelas que respondem monossilabicamente às indagações. Realmente não sei o que me fez sentar ao seu lado.

- Boa tarde. Se incomoda se eu sentar?

- Pode sentar.

Sentei. E, pelo tom de sua voz, aquelas deviam ser as únicas frases que trocaríamos naquela tarde e pro resto das nossas vidas. Arrependi-me, mas tive que disfarçar. Abri o livro, o folheei rapidamente, sem ler ao menos um parágrafo. Minto, li a legenda de uma das fotos impressas numa das páginas centrais. Estava me preparando para levantar e ir embora.

- Pelo visto está cursando administração, não é? - ela me perguntou.

- Como sabe?

- O livro.

- Ah, sim. O livro. Pelo jeito você faz esse curso também, né?

- Meu namorado. Ele é quem faz, já está no terceiro ano.

- Claro... seu namorado.

Ótimo, ela tinha um namorado. Considerei ser um chega pra lá, tanto é que não quis alongar nosso papo. Além do mais, tudo o que eu não queria discutir eram as idiotices do livro. Recolhi minhas traqueiras, levantei e me dirigi ao balcão de xérox. Dei um tchau insosso, que ela respondeu com um "até breve" sem ao menos erguer os olhos. A atração que senti por Angélica foi para o beleléu. Pelo menos eu pensava que tivesse ido. Tirei as cópias, coloquei-as numa pasta com elástico preta, comprei um refrigerante em lata e assisti ao filme - uma porcaria de filme, por sinal. Quer dizer, nem sei se era tão ruim assim. Mas posso afirmar que passei a sessão inteira pensando nela. Para ser sincero, passei a semana inteira pensando na moça da biblioteca.

O fato é que nunca tivemos nada formal. Jamais cheguei a algum lugar e apresentei-a como namorada. Pra falar a verdade, isso era reflexo da nossa condição. Não éramos nada além de um homem e uma mulher que se encontravam freqüentemente. No começo, para ler alguns textos na Mário de Andrade, na Rua da Consolação (porque depois daquele nosso primeiro encontro, transcorrida uma semana, tornei-me um rato de biblioteca, simplesmente para ficar ao seu lado, para sentir seu suave perfume - discreto como ela -, para trocar algumas poucas idéias sobre o noticiário ou sobre como fora a semana de cada um de nós e, por fim, para vê-la abraçada ao namorado, que vinha buscá-la, para meu desgosto, todas as vezes. Todas não, num desses dias ele não veio, e foi aí que consegui segurar a mão de Angélica pela primeira vez). Os bêbados e as putas já foram embora. Uma e meia da tarde. O público do bar agora é diversificado. Transeuntes apressados para tomar um cafezinho, trabalhadores da rua esperando serem servidos com um picadinho de carne de boi fedorento pra diabo, pedintes maltrapilhos, homens de gravata comprando cigarros. Olho para eles e sinto inveja. Sou um ser invejoso por natureza. Cada tragada dos homens me provoca um desesperador desejo de comprar uma carteira e devorá-la ali mesmo, todos os cigarros de uma só vez pra, quem sabe, recuperar todo o tempo perdido. Ligo novamente. Nada. Decerto Angel não teve coragem de dizer o que tinha pra dizer. "Você é maluco, cara! Tanto tempo e a gente nunca assumiu compromisso nenhum, agora você vem com esse papo de ir morar junto lá no Cafundó do Judas..." Eu sei, eu sei. Idéia maluca mesmo essa de achar que Angélica viria comigo. Na verdade eu nem devia tê-la conhecido. Devia tê-la deixado lá, na Mário de Andrade, lendo seus livros de filosofia em francês. Devia tê-la deixado casar com aquele babaca que a buscava na saída da biblioteca. Jamais devia ter pegado suas mãos finas e delicadas. Nossas bocas não deviam ter se encontrado. As coisas seriam mais fáceis agora. Resolvi ir para a rodoviária. Comprei um maço de cigarros, mas naquele momento não acendi nenhum.

*****

Estou nesta terra maldita há mais de três meses. Fiz poucos amigos, como é do meu feitio. Então me resta ir ao cinema e freqüentar uma praça imunda que tem aqui perto do meu apartamento. Sempro levo comigo uma revista ou um jornal para ajudar a passar o tempo. Não que eu queira que ele passe mais rápido, até porque tenho medo de que julho chegue. Terei de ir a São Paulo, meu pai morreu e deixou umas pendências para eu discutir com minha irmã. Sei que ela e meu cunhado vão querer ficar com tudo, e é até capaz de ela sugerir que eu só deva ficar mesmo é com as dívidas do pai, porque é isso que eu mereço. Não falava com o velho há mais de cinco anos, e agora é que não vai dar pra falar mesmo. Recebi dois telefonemas de Sampa desde que vim para o Mato Grosso. Ambos da Maria Cristina, minha irmãzinha querida. Um deles foi para comunicar a morte do velho: "Não acredito que não virá para o enterro do pai, Lúcio...". Não fui. Sofri com a morte dele, mas não considerei que minha presença em seu sepulcramento fosse ser uma redenção dos meus pecados. A outra ligação, no dia seguinte, foi para comunicar que Angélica tinha ido ao velório.

- Notícias do Lúcio?... - quis saber.

- Ele não vem. Falei com ele ontem. Nunca entendi meu irmão.

- Nem eu. Eu ia deixar tudo.

- Como assim?

- Fiquei esperando ele me ligar. Esperei a tarde inteira. Fui até a rodoviária, mas o ônibus já tinha ido embora. Acho que, no fundo, ele só fez o convite da boca pra fora.

Emudeci. Deus é testemunha da quantidade de vezes que tentei ligar naquele dia. Eu presumi que Angélica não queria sequer me dar satisfação. Talvez até quisesse me poupar do constrangimento de ouvir um redundante não para o meu convite. Mas agora é tarde. Houve um desencontro, pura e simplesmente. Mas talvez esse desvio de rota tenha sido arquitetado pelos nossos destinos. Talvez não era o caso de ficarmos juntos mesmo. Agora já não sei mais de nada. Sei que estou aqui na praça - e hoje esqueci de trazer jornal.

Resta-me observar os pássaros graúdos e alguns dos freqüentadores. Tem um gordo estressado blasfemando contra o próprio celular. Acho que está sem sinal. Odeio celulares.

 
 

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