QUALQUER MARCA, SEM FILTRO
Luís Valise
 

- Primeiro, vai eu!

Fiquei invocado. Ele por quê? A mina não era de ninguém, ou então era de todos. Eu bem que pressenti que aquilo não ia terminar bem. Primeiro, que a informação era que ela era maior de idade, e na verdade a garota não devia ter nem dezesseis. Isso deixa a imprensa ouriçada, nego quer vender jornal, então faz o maior auê, como se dois ou três anos fizessem alguma diferença. Quinze ou dezoito, são todas umas coitadas quando caem nas mãos da gente. Segundo, que o trato não foi esse. A gente é seqüestrador, o negócio é grana, não buceta. Pra buceta não precisa seqüestrar, é só sorrir, ou pagar. Terceiro, é covardia. Não porque ela tem uns quinze anos, porque está com os olhos vendados, mãos amarradas nas costas, jogada num colchonete todo manchado de mijo. Porra, esse colchonete deve feder mais que a cueca do Maionese. Ele saiu de cana depois de dois meses, e ainda tá com a mesma roupa. Imagine o cheiro da cueca... Fiquei invocado:

- Porra nenhuma, Maionese. O trato foi não encostar na mina.

Ele não gostava de ser contrariado. Só porque já tinha apagado uns quatro ou cinco, inclusive um PM, se achava pra caralho. E pra falar a verdade o cara era indigesto. Sabe quando o cara já nasce filha da puta? Então, o Maiô era um desses casos. Tinhoso, marrento, safado desde pequeno. Coisa-ruim. Isso num lugar onde quase todos são mais ou menos assim. Quer dizer, os que sobrevivem. E é claro que, como tantos, podia ter virado pedreiro, sei lá, essas coisas que tem que fazer força. Mas, não, como outros tantos virou mesmo foi ladrão. Eu também sou ladrão. Mas não sou cruel, não vibro com a dor alheia. Por exemplo, o Heleno, que foi achado dividido em três na linha do trem, o Heleno tinha um cunhado tira, investigador, e até aí não tem nada, qualquer um pode ter um rato na família, mas esse cara gostava de torturar. Não digo dar umas porradas, porque isso toda a polícia dá mesmo, e bandido sabe que a lei é essa, caiu, fudeu. Não, o cara gostava de encostar cigarro aceso no preso todo amarrado, às vezes pendurado. Ele dizia assim: "Fala, senão eu queimo teu pau!". Se o cara tinha o que falar, falava, e mesmo assim ele dava uma encostadinha com a brasa nos pentelhos, saía fumaça, um cheiro ruim, e a brasa chegava na carne, fazia um barulhinho de fritura, tinha nego que se cagava de dor. Agora, se o cara não tinha nada pra entregar, era só um bobo-alegre, então eram várias encostadinhas, enquanto o cara chamava pela mãe, pedia pra morrer, via a cara do diabo. Dizem que o puto, enquanto fazia isso, ficava de pau duro. Até hoje ninguém sabe se o Heleno atravessou a linha do trem de fogo, ou se foi vingança. Também, com um parente daqueles tudo é possível.

- Num tem trato, nem destrato! Ela já é grandinha, um sabugo a mais ou a menos não mata ninguém. Eu não vejo carne fresca há um tempão, então é melhor não me invocar, não quebrar o meu barato. Vou comer gostoso, depois vocês fazem como quiserem. E vai todo mundo lá pra fora, que eu não quero ninguém olhando a minha bunda.

Tem nego que engorda na cadeia, e o Maionese era um desses. Comida nojenta, mofada, azeda, e o puto come tudinho, ainda de olho no resto do companheiro: "Vai mais, não? Então, com sua licença..." e pega a quentinha do outro e plá!, bate o rango rançoso na maior. Depois passa o resto do tempo deitado, pensando merda, então vai ficando com o maior barrigão. O escroto tava assim. De qualquer jeito, eu não achava certo. A menina estava com os olhos vendados, e tremia toda ouvindo a conversa. Tinha gente lá fora pedindo grana de resgate. Quando a grana chegasse, o Maionese podia pegar uma vagaba nova, fazer tudinho numa boa. Olhei pro Russo pra sentir a opinião, mas o crioulo só sabia brincar com a .380. Tirava o pente, punha o pente, armava, desarmava, era click, clock, click, clock. Falei grosso:

- Quê que cê acha, Russo? O combinado foi não tocar na menina, agora o Maionese tá com essa chinfra. Cê não acha que ele pode esperar mais um pouco, até chegar a grana e comer uma vagabunda? Diz aí, tu que tem irmã pequena...

O Russo ficou todo enrolado. Ele tinha irmã quase da idade da garota, mas se cagava de medo do Maiô. O crioulo ficou até meio branco:

- Sei lá, mano, se o cara tá com tesão, problema dele, ela não é minha irmã.

Sem querer, ele tinha desafiado o Maionese:

- E daí, negão, se ela fosse tua irmã? Se eu ficasse a fim comia ela também, tá ligado?

O ar ficou cheio de eletricidade. Percebi que até a garota tinha parado de tremer. Russo estava segurando o pente da pistola fora da arma. Sem olhar para o outro, foi encaixando o pente devagar. Acho que ele se fodeu exatamente por ser cagão. A testa ficou cheia de gotas de suor. Ele nem olhou pro Maionese, só foi enfiando o pente, calado, tremendo um pouco. Ninguém sabe se ele ia atirar, ou não. O Maionese, que não era bobo nem nada, não esperou. Cagão, com uma arma na mão, se acha macho. Então o Maiô pegou o tresoitão e deu um pipoco pra cima do crioulo. A garota pulou no colchonete. Juro, acho que ela saiu do chão uns três centímetros. A bala pegou bem no meio do peito do Russo. Até hoje não sei com certeza onde fica o coração, se do lado esquerdo ou no meio do peito, sei que o crioulo só fechou os olhos e abaixou a cabeça. Do buraquinho no peito desceu um filete vermelho-sangue (também, pudera!) que começou a empapar o cós da bermuda azul-escuro. Senti um cheiro de pólvora, um cheiro de sangue, e acho que o cheiro da morte. Eu estava sem nada nas mãos. Meu revólver estava preso na cintura, mas nas costas, em cima da bunda. Eu precisava falar alguma coisa pra quebrar o silêncio perigoso:

- Porra, Maiô, puta cagada! O crioulo era gente fina! Cê é mesmo foda!

Ele achou que aquilo era um elogio, e foi ficando mais calmo. A garota não tremia. Não sei, vai ver tinha desmaiado. Acho que ele também estava arrependido. Não era caso de morte. Umas porradas, e aposto que o Russo trazia a irmã pro outro. Agora era tarde. Eu precisava continuar falando, antes que o puto tivesse outros pensamentos:

- Bom, tá feito, tá feito. E quer saber? Vai sobrar mais grana. Agora não adianta chorar, o Russo já era. Mas a irmã ainda tá por aí, quáquáquáquá.

O cara ficou procurando a piada. Deu um sorriso, pra não parecer ainda mais burro. Eu tinha que sair dali, rapidinho. Levantei, chutei a .380 na direção do Maionese, segurei os tornozelos do crioulo e comecei a puxa-lo para fora do barraco. O outro continuava segurando o revólver, olhando ora pra automática no chão, junto à sua coxa, ora pra mim, tentando adivinhar o que eu faria em seguida. Quando eu estava perto da porta, ele perguntou:

- Onde cê pensa que vai?

- Eu vou levar o crioulo pra fora. Ou você gosta de ficar olhando presunto? E, depois, você vai comer a mina com ele do lado? Tô fora! E, quer saber? Quando eu sair cê pode comer ela à vontade, não tô nem aí. Vou ficar aqui fora, só ouvindo a gemeção. Periga de quando você terminar eu também dar um trato nela, sacumé? Não arromba muito, quáquáquáquá.

Fui indo devagar, olhando o rastro de sangue na terra batida, sorrindo maneiro, seguindo os movimentos do outro com o canto do olho. Ele não se mexeu. Arrastei o corpo até uma touceira de capim, escondi o melhor que pude. Ele tinha fechado a porta. Acendi um cigarro. Ouvi um princípio de choro, um tapa na cara, silêncio. Dei a volta no barraco, me aproximei pela janela, estiquei o pescoço, vi que ela ainda estava de calças, mas sua blusa estava enrolada junto ao pescoço. Maionese chupava os peitos da garota, a arma em sua mão direita. Lágrimas escapavam pelos cantos da venda, e um lado do rosto dela estava vermelho. De onde eu estava não podia atirar. Se errasse, pegava nela. Se acertasse, e a bala transfixasse o puto, também pegava nela. Se tentasse pular a janela tomava tiro na cara. Se não fizesse nada, nada aconteceria, ao menos pra mim. Era nisso que eu pensava quando ouvi barulho de luta, e outro tapa, e a garota começou a chorar alto, mais um tapa. Olhei de novo, ele tentava abaixar suas calças, e ela se contorcia, e a calça era justa, e ele tentava, de joelhos, de joelhos, a arma esquecida no chão, e a minha fez um puta barulho, mas ele não ouviu. Acertei o tiro bem atrás da orelha, lugar delicado e doloroso. Ele tombou sobre as pernas semi-descobertas da menina, seu sangue sujou suas coxas, a calcinha ficou suja de sangue, ela ficou toda mole, acho que ia desmaiar. Eu não entrei na casa. Tinha sujado. Tudo estava dando errado. Era hora de dar no pé. Depois eu ligava pro negociador, ele que se virasse. Fui saindo sem pressa, a estradinha estava deserta, era só caminhar até o asfalto, depois eu dava um jeito. Tinha andado uns trezentos metros, dei uma olhada para trás, assim, para nada, só pra desencanar, e quando olhei de novo pra frente eles estavam lá. Vestidos de preto, gorros ninja cobrindo o rosto, escopetas 12 pra cima, tudo apontando pra mim, em silêncio. Um chegou bem perto e sussurrou junto ao meu ouvido:

- Cadê a garota?

Ergui o braço, devagar, mostrei a direção do barraco. Foram num trote silencioso, as botas de borracha batendo na terra seca e fofa. Um tira magro e alto algemou minhas mãos para trás, me levou para a traseira de um camburão negro, e lá dentro o cheiro lembrava a cueca do Maionese. Ele deixou a porta aberta, enquanto tirava o maço de cigarros do bolso da calça. Vi seus dedos amarelados pelo fumo erguerem a máscara e ajeitar um cigarro na boca. Perguntou se eu fumava. Cruzei as pernas, instintivamente. O cunhado do Heleno só pensava nisso.

 
 

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