FANTASMAS NÃO CONTAM
Ly Sabas
 
 

Sentada no batente ela ficou horas perdida. Coração mais distante que o olhar. O amarelo do dia sucedendo ao violeta da noite. Não tomou conhecimento dos mugidos doridos vindos do curral. Nem notou o violeta engolir o amarelo, chamando os fantasmas da dor para gargalhar em seus ouvidos moucos. Sequer notou quando eles tomaram suas mãos e a levaram ao fundo do poço, onde não havia ninguém que lhe lambesse as feridas. Nem mesmo o cão faminto que gania baixinho, encostado ao batente carcomido. Os fantasmas, estes, sabiam bem o que lhe dizer.

E se reviu criança sofrida, pés descalços, vestido roto, andando léguas até juntar um mísero feixe de lenha. E sentiu o peso da lata velha em sua cabeça, a língua engrossou com o gosto ocre da água lamacenta, o nariz fremiu de asco do bodum que subia de seu corpo. E sentiu o carinho fugidio, feito pela mão escalavrada de sua mãe. E ouviu a tosse rouca que vinha do cubículo onde o pai dormia. Não fez movimento algum para afastar a dor; não tapou os ouvidos, não balançou a cabeça.

E veio o vento, depois a chuva. O cão foi se arrastando para debaixo da mesa, olhos pedintes em direção à figura estática. O cheiro da terra molhada alcançou seu sofrimento e lá estava ela, alegre, rodopiando no quintal, vestido grudado ao corpo adolescente, molhado por outra chuva. Suas mãos começaram a tremer à lembrança do debulhar o milho, do carpir a horta, do ordenhar a cabra. Lágrimas escorreram pelas frinchas das rugas ao vislumbrar na alma, o chão virado em neve de algodão. Pai e mãe, cantarolando felizes, carregando os cestos pesados em direção ao carro de boi. E o boi roliço, de mugido vigoroso, sendo conduzido estrada afora pelas mãos do homem sem história.

Os fantasmas queriam contar para ela a história daquele homem, mas tinham perdido forças no embate quando começou a chover. Ela agora, não queria mais ouví-los. Revivia parte do que queriam lhe contar. Sentia a frescura da brisa noturna nas coxas descobertas pela saia levantada, a maciez do feno, o peso do corpo, o fogo em suas entranhas.

Acariciou o ventre murcho sentindo-o intumescer em seu transe. Doce alegria cantarolou em seus ouvidos enquanto repetia as palavras pronunciadas pelo velho padre. E novamente o peso do corpo no sacolejar do carro, no rangido da rede, na maciez do açude, no arranhar do pasto. Foi quando o amarelo empurrou a chuva e o vapor empapou seu corpo que reviveu a dor do ventre sendo rasgado. Os fantasmas gargalharam, revigorados. Retorceu-se toda tapando os ouvidos para fugir do choro débil do anjinho e dos gritos que acompanharam cada pá de terra sendo jogada.

A alegria se foi e junto com ela o homem do qual conhecia só uma parte da história. Enquanto o revia subindo no pau-de-arara, sangrando as últimas gotas de emoções, refez o caminho de volta pela frágil ponte da sanidade. O corpo, castigado pela longa catatonia, obedeceu a suas ordens com dificuldade. Mas reviveu aos poucos, com a ajuda do cão e da vaca, únicas testemunhas de sua dor. Porque os fantasmas, esses não contam.

 
 

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