ALLEGRO MISANTROPO X
Sérgio Galli
 
Verão infernal de 2005

(ao som de Mcoy Tyner)

Duas efemérides - entre tantas neste ano (por exemplo, os 30 anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog no Dói-Codi) -- merecem algumas considerações. A primeira a ser lembrada são os 400 anos da primeira edição de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Obra que inicia o romance e que, com suas várias interpretações e leituras, é de uma atualidade ímpar. A segunda efeméride a se lembrada são os 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial.

Dom Quixote - o cavaleiro da triste figura - imaginemos, ao percorrer os destroços de Berlim, Londres, Paris, Dresden, Leipzig, Moscou, Leningrado, Stalingrado, Kiev, Roma, Praga, Budapeste, Varsóvia, Cracóvia, e tantas outras cidades européias, cenário principal da maior carnificina da história da humanidade, diria que os moinhos de ventos são muito mais difíceis de enfrentar do que há 400 anos. Quixote e Sancho Pança sobem num barco e navegam pelos Rios Vístula, Oder, Moscou, Danúbio, Reno, Sena, Tamisa, Pó, as águas tingidas de escarlate e cheiram cinza. Mas o mais trágico ainda estava por vir. Hiroshima e Nagasaki destruídas pela bomba atômica. A possibilidade do homem se autodestruir se torna uma realidade. As aventuras do cavaleiro da triste figura seriam muito mais trágicas e aterradoras. Um desses filmes sanguinolentos de óliudi poderia expressar essas novas aventuras de Dom Quixote.

Qual seria o roteiro?

Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, adentram em Dachau, Auschwitz, se deparam com as câmeras de gás, os fornos crematórios. Cadáveres não ilustres perambulam pelos campos de concentração. O cheiro de carne queimada é insuportável, mas não mais que o odor dos que ainda sobrevivem amontoados nas celas. Na próxima cena, nosso herói quixotesco chega a Hiroshima e Nagasaki. Peles descarnadas. Corpos destroçados. Gerações e gerações ainda sofreriam seqüelas. O horror - estampado no "O grito", de Edvar Munch - não tinha fim.

O cavaleiro da melancólica figura assistia ao maior e último espetáculo da Terra. O ápice da civilização. Exemplo de sensatez, tolerância, cordialidade. Seis mil anos de civilização culminavam na morte cujas estimativas calculam em 40 milhões de pessoas. O Inferno de Dante parece um parque de diversões comparado ao que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. O apocalipse de São João é apenas uma história da carochinha. Assim, o cavaleiro da taciturna figura e seu inseparável escudeiro caminham sobre os escombros, os cadáveres, e admiravam a extinção do homo sapiens sapiens.

Dom Quixote percebeu que era o canto do cisne. Mas de nada adiantaram os mortos, os mutilados, os sobreviventes, a história. Não se aprendeu com os erros. Ao contrário, outros, mais graves ainda, foram e continuam a ser cometidos. A marcha da insensatez continua a passos largos.

Sugestão de leitura: "Notícias do Império", Fernando Del Paso, Record.

 
 

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