FATALIDADE
Ana Terra
 

Fatalidades.

Como elas aparecem? Não sabemos. Talvez seja por isso que acredito em carmas.

Um me acompanha há muitos anos. Receio até em escrever seu nome. Mas necessito de um desabafo: não agüento mais goteiras...

Estas gotinhas inconvenientes me perseguem desde a infância. Já nem sei quantos endereços tive, mas elas nunca me abandonaram.

Morei em casas velhas, novas, reformadas e "elas" sempre encontram uma fresta para me enlouquecer. Madrugadas já passei com panos, baldes, tentando enganá-las. Saga inútil. "Elas" sempre vencem.

Camas ensopadas, cadeiras para cima, desespero, lágrimas de revolta me provocam estas inocentes gotinhas.

Há anos venho tentando saber a razão desta fatalidade.

Num final de semana caiu em minhas mãos um livro sobre vidas passadas. Um holofote clareou minha mente e encontrei a resposta: há milênios, num ato insano, coloquei fogo nos telhados de capim seco de Machu Pichu.

Naquela época, trabalhava na lavoura da cidade. Sofria com o sol escaldante e com ar rarefeito da Cordilheira dos Andes. Cuidava de plantas especiais utilizadas na alimentação do Imperador (um déspota) e dos Grandes Sábios e Sacerdotes.

Á tardinha, exausta, era obrigada assistir a estranhos rituais, que prometiam a salvação da minha alma. A variedade de Deuses era enorme: Viracocha (Sol), Mama Quila (Lua), Pacha Mama (Terra), Mama Sara (mãe do milho) Mama Cocha (mãe do mar), etc. Depois de um certo tempo aprendi que todos os dogmas poderiam ser resumidos em apenas uma frase: obedeça e não faça perguntas.

O ritual que mais me impressionava era o sacrifício humano quando o "escolhido" era degolado e o seu sangue oferecido ao Deus Sol.

Quietinha e assustada pensava: já não bastava o trabalho cruel, a obediência, a fé imposta? Que serventia teria o sangue para o Sol?

O tempo passava devagar e monótono. O corpo cansado e a alma abandonada esperando por Viracocha, o Salvador.

Os trabalhadores da lavoura recebiam uma folha de coca por dia para fazer um chá ralo. O ar rarefeito exigia esta bebida para que se pudesse respirar melhor. Guardei as minhas entre os farrapos da roupa de lã de lhama que usava. Acordei algumas madrugadas com apnéia, mas resisti. Suportei corajosamente a crise de abstinência.

Insone, numa madrugada de Lua Cheia, saí do meu minúsculo quarto. Deitei numa pedra e iniciei uma conversa com o céu estrelado. Perguntei por Viracocha e não obtive resposta.

Não suportava tanto sofrimento. Queria, pelo menos, um motivo para sorrir.

Coloquei as mãos entre minhas vestes e encontrei um bom punhado de folhas de coca. Uma a uma, elas foram depositadas numa tigela de argila cozida, onde as triturei. Misturei com um pouco de água quente, obtendo um viscoso mingau verde musgo. Sem pensar, engoli a beberagem. Corri até o Templo da Lua pedindo socorro, mas só ganhei um facho de luz que prateou minha pele morena. Respostas? Nenhuma.

A insanidade me aprisionou. Acendi uma tocha e ateei fogo em todos os telhados de Machu Pichu.

Os habitantes da sagrada vila tiveram a ilusão de que Virachocha havia finalmente cumprido sua promessa. Ajoelharam-se e abriram os braços para receber o Salvador.

Um deles, menos atento aos céus, me viu com a tocha, dando fim ao último telhado que cobria meu quartinho.

A fúria tomou o lugar da fé. Fui arrastada violentamente até a Pedra dos Sacrifícios e degolada. Hoje entendo o frio na espinha quando visitei a cidade perdida há alguns anos atrás.

Conta a história que os Incas desapareceram sem deixar rastros. Provavelmente construíram outra cidade num local escondido da Cordilheira. Acho que desenvolveram alguma técnica para proteger os telhados de capim seco do fogo. Viracocha ainda não voltou.

Recentemente fiz nova mudança. A casa fica próxima de uma gruta que, segundo dizem, faz a ligação entre o Brasil e Machu Pichu.

Curiosa, programei uma visita ao tão falado lugar. Entrei num buraco escuro e depois de dar alguns passos incertos, fui acometida de um ataque de pânico. Sai correndo jurando nunca mais voltar.

À noite, uma forte tempestade. Acordei ensopada. Minha velha conhecida goteira estava ali, rindo da minha cara.

Morrendo de frio, tentei acender a luz, mas não tinha energia elétrica. Batendo com a cabeça nas paredes procurei por uma tocha, digo, vela. O clarão me mostrou a cama de água.

Resignei-me. Ao amanhecer, humildemente pedi ao Deus Sol que não permita que as benditas gotinhas atrapalhem meu sono eterno. Que elas não encontrem nenhuma fresta na minha última casa.

Uma única pergunta martela minha mente: quantas gotas ainda faltam para quitar minha antiga dívida?

 
 

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