DEPOIMENTO VERDADE
Leonardo de Moraes
 
 

Quem disser "eu já sabia... já estava esperando... eu imaginava..." está claramente mentindo. Não existe pré-conformismo, apenas uma forma altiva de lidar com o imponderável... uma forma de disfarçar o destroçado orgulho-próprio arvorando-se em bidu do próprio destino.

Ao contrário dessas pessoas, eu reconheço que não imaginava. Eu... não previa. Não sabia, não queria. E as palavras do médico me soaram cáusticas, apesar do glaceado infantil em que vieram recobertas. Tanto tato, tanto macio na fala... reconheço o esforço louvável do meu ginecologista em evitar tanto choro. Esforço em vão, fique claro... Preenchi todo o consultório com um audível lamento de fêmea a ser mutilada, a sentir a morte palpável.

"São malignos sim, infelizmente..."

Lá estavam na tela do aparelho, no quadro de luz, na placa impressa... nódulos pequenos, furtivos a preparar armadilha em meus seios... belo campo minado, brincaria inoportuno meu ex-marido.

E a verdade se fez penitenciante. Vasculhei mentalmente meus últimos anos, meus mais recentes erros. Qual desgosto? Quais iras contidas haveriam se materializado em meu seio? Tudo é somatização, isso é o que diziam a revistas da sala de espera... Tudo é excremento psicológico... frustração amorosa... desatenção na infância... será mesmo?

Recordando a origem de tudo... sei que nunca um par de seios foi tão desejado, comemorado até. Nos idos da década de sessenta, após apagar as treze velinhas com as amigas do Colégio Sion, lembro com prazer do primeiro sutiã de algodão... a acolhê-los carinhoso, suave na pele. Uma surpresa da mamãe, e recebi o embrulho com um beijo. Era o amarelinho... que até havia comprado junto, pensando ser para a irmã mais velha.

Não, não tive uma infância desatenta. Fui recoberta de amor.

Quem sabe a culpa esteja no primeiro casamento... na carência da viuvez precoce... no divórcio do segundo marido. Uma punição por ter arrancado dele também a casa da praia...

As discussões por vaga em estacionamento de shopping, nestes trinta anos de carteira de habilitação, estou certa que contribuíram. Também o gosto pela carne vermelha e o desprezo por qualquer farelo que não seja de pão... Mas como saber a causa, meu Deus?

Mais soja, menos soja... mais amor, menos amor... mais placidez, menos passividade... mais paz, menos agressividade. E a isso tudo, some duas cápsulas de vitamina E... A tudo isso, quer saber, vou é somar uma nova frase de efeito.

Agora direi a todos, em alto e bom som "Não, eu não mereço", "não, não há qualquer razão para essa doença" e vou me libertar de outra mania além das premonitórias... vou me libertar da mania auto-investigativa, auto-punitiva, na qual muitas mulheres chafurdam em prospecções psicológicas.

Adeus culpa católica, mas pretendo encarar minha vida com fé... com fé em tudo o que está por vir. Encararei tudo como mera fatalidade de quem viveu, amou e foi muito amada. Chega de subterfúgios.

Rosane Maria Lodovici
Pedagoga, 49 anos

 

Nota do autor: os acontecimentos, nomes e dados pessoais mencionados no texto são puramente ficcionais.

 
 

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