ALLEGRO MISANTROPO XI
Sérgio Galli
 
Verão infernal de 2005

(ao som de O Circo Místico, de Edu Lobo e Chico Buarque)


Enfim, a solução final (comparações com a política nazista são apenas meras coincidências). Talvez com um quê de crueldade, mas a decisão é inevitável. Na verdade, trata-se de mais um benefício do governo (bolsa-família, bolsa-educação, etc.). Diante da situação preocupante do déficit da previdência, co o risco fatal de falência do Estado, o governo deve editar a medida provisória que institui o bolsa-fatalidade para acabar definitivamente com o déficit previdenciário e aumentar o superávit primário. A decisão foi tomada depois que um cidadão encaminhou a sugestão, que foi discutida arduamente por assessores, marqueteiros, ministros e, finalmente, encaminhada ao presidente da República. O ministro do Planejamento incluiu os custos do projeto no próximo orçamento. Já o ministro da Propaganda lançou o slogan da campanha "Aposentado bom é aposentado eliminado". Todos os gerentes de Recursos Humanos (RH) - tanto do setor público quanto de empresas privadas - foram instruídos a preparar e executar campanhas motivacionais para que os empregados adiram ao bolsa-fatalidade.

Depois de um vida de trabalho, de produtividade, de contribuição ininterrupta aos cofres públicos, sustenta a família (e, principalmente, o governo e os banqueiros) o trabalhador ao final dessa longa jornada terá duas opções que fazem parte do bolsa-fatalidade - o novo benefício do Programa Social do Governo - o vale-caixão, se escolher ser enterrado, ou o vale-auschwitz, se preferir ser cremado. Não haverá mais aposentadoria. Feita a opção, o ex-trabalhador deve encaminhar a documentação ao posto mais próximo do INSS, ou, fazer o pedido pela Internet: www.inss.gov.br. Com o déficit zerado e o aumento do superávit primário, viveremos no melhor dos mundos, o paraíso chegará à Terra, a felicidade, enfim, chegará, o Brazil, não mais será o país do futuro, sim, do presente, como, aliás, apregoa do Chuí ao Oiapoque o aprendiz de doutor Pangloss, o presidente Lula.

Às viúvas, filhos, será dado o bolsa-reino-do-céu.

Para os próximos anos, o governo já prepara um novo projeto para o Programa Social. Tudo, claro, tendo em vista o crescimento sustento, o aumento do PIB quando, segundo o doutor Pangloss tupiniquim, "o século XXI será o século do Brasil" (dizer que isso parece o lema da ditadura: "Brasil Grande", é mera coincidência ou choramingo da oposição). Mas vamos ao que interessa. O novo projeto terá na sua primeira etapa a extinção da carteira de trabalho e, claro, todos os "benefícios" (férias remuneradas, décimo terceiro salário, etc.). Todos os trabalhadores terão de se tornar pessoas jurídicas. O próximo passo será a eliminação total dos trabalhadores que serão substituídos por robôs. Assim, as empresas e o governo não terão mais custos com pessoal e com um ganho extra: acabarão os departamentos de recursos humanos. Os marqueteiros do governo já estão alvoroçados com as polpudas e geniais campanhas: "o trabalhador que desce redondo", "robô 365 dias por ano, sem reclamar, sem faltar, e o melhor, sem salário e benefícios!", "Aposentado eliminado, um país de todos" e por aí afora.

Com tantas idéias brilhantes, já se pensa em eliminar os pedestres, depois os cidadãos, ou seja, só haveria contribuintes, consumidores e motoristas. A felicidade geral da nação, do ministro da Fazenda, do presidente do Banco Central, do arremedo de doutor Pangloss, e, principalmente, dos presidentes do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da alegria mais que contagiante e carnavalesca possível dos acionistas do Citibank, Deutsche Bank. Claro, tudo isso em nome de Deus, da Liberdade, dos ideais de 1789 e o óleo de Delacroix.

Isto é o Progresso.

Isto é o Sucesso.

Sugestão de leitura: "Hominescências", Michel Serres, Bertrand Brasil.

 
 

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