DE CORPOS, COPOS E BEATLES
Edson Campolina
 
 

Por várias noites dirigiu seu carro por ruas e avenidas sem parar em qualquer destino, programado ou não. Voltava para casa mais triste e depressivo que quando saíra movido por um fio de esperança, arrependido e acovardado pela timidez. Exceto, é claro, nas visitas ao amigo confidente. Mas este não poderia satisfazer todos os propósitos de um recém divorciado solitário em busca de companhia nas noites de sexta-feira.

Acordado em seu pequeno quarto encolhia-se todas as noites esperando que o sono lhe espantasse o desejo e a saudade de uma pele de mulher macia e perfumada. A solidão exalava-se pelos poros de seu corpo e o silêncio das noites inquietavam sua mente. Ele sentia-se cada vez mais diminuto. Ansiava pelo dia preenchido com sua burocracia.

Naquela sexta-feira arriscar-se-ia mais uma vez no balcão do Pau&Pedra. Era a quinzena dos "Rapazes de Liverpool". Chegaria ainda cedo se assegurando do melhor canto do balcão do bar, donde poderia observar todo o salão sem ser notado facilmente. Mas sua convicção esvaziava-se com o passar da tarde. Uma grande dúvida, ou medo, antecedeu sua viagem até o outro lado da cidade. No trajeto, ouviu os sucessos do Supertramp em alto volume numa tentativa de auto-estímulo, desprendendo-se por aqueles instantes de suas correntes.

Pacientemente aguardou a hora da apresentação da banda distraindo-se com os detalhes da montagem dos instrumentos no palco. Grupos de fãs, famílias, outros solitários e casais preenchiam o espaço do salão e paulatinamente um burburinho de vozes, gargalhadas, tilintares e acordes lhe roubavam a exclusividade que degustava ao antecipar-se. A atmosfera do bar aproximava-se de um clube de porão londrino, carregado de fumaça e pessoas, escuro e barulhento. Paredes de pedras aparentes e a decoração em madeira rústica caracterizavam uma caverna quadrada esculpida às margens da avenida belo-horizontina.

Ele resignava-se, com seu copo de Campari, em apenas observar as pessoas e invejar os músicos, balançando discretamente uma das pernas apoiadas no descanso do banco. Sentia-se feliz e realizava-se, pois curtia aquelas noites recheadas pelas baladas da banda inglesa. Mas na medida em que seu copo esvaziava-se e a madrugada se apresentava, também sua alma reduzia-se com a solidão. Pois momentos como aquele se perderiam no emaranhado da memória sem que fossem compartilhados.

Debruçado sobre o balcão e segurando o copo quase vazio nas mãos, comparou-se com o utensílio. Em seu corpo imperceptível um vazio tomava-lhe conta da alma. O vermelho da bebida apagava-se com a água do gelo. Assim como sua vida perdia a cor e o sabor que sentira outrora. O copo estaria inútil ao último gole. Seu corpo, quase invisível aos pares, carregava uma alma reduzida às lembranças de uma vida mal sentida.

Pediu que lhe completasse a dose. O malte vermelho misturou-se vagarosamente com a água no fundo do copo até que se uniformizasse em um só tom. Sorveu o líquido em dois longos goles, degustando o amargo no fundo e um adocicado na ponta da língua. Sem ninguém no salão para despedir-se, saiu carregando sua amargura pela madrugada da cidade na expectativa de que no episódio de sua existência alguém lhe completasse a alma pequena e desbotada.

Fim.

 
 

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