NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte três)
Beto Muniz
 
 

A mãe pensa que não escutou direito e manda o filho deixar de sandices. Ela não está duvidando do menino, apenas quer saber dessa história direito. A mulher também não tem o costume de estender conversa, ela é exatamente igual aos demais integrantes da família, para não encompridar assunto resolve dizer que o menino está de sandices, que é o mesmo que dizer que ele está de lorota, de mentira. Ela diz isso só por dizer, sabe que o menino não mente, seus filhos não mentem... Só Irene deu para mentir ultimamente por conta do enrabicho pelo Zé Florêncio. De resto os filhos podem não entender direito um acontecimento e contar o ocorrido de maneira que pareça uma sandice, uma lorota - e para gente de fora da família até pode parecer que seja mentira se ouve as asneiras que brotam pela boca de um dos seus meninos - porém, se alguém vier lhe dizer que um filho seu está de mentira ela vai querer ouvir a história diretamente da boca do filho. Só assim vai entender e explicar o que precisa ser explicado e tirar a dúvida do ouvinte que acusa um filho seu de mentiroso. Mas um filho seu nunca foi pego em mentira, tirando Irene que ultimamente a mãe desconfia mas ainda não flagrou em mentira, e a mãe sabe que basta dizer pro filho deixar de sandices que ele entende. Entende que ela não compreendeu a história e quer que o filho lhe repita o causo com mais explicações. Assim, quando a mãe diz pro menino deixar de sandices ele de pronto narra novamente o acontecido e, conforme esperado pela mãe, com mais detalhes.

- Verdade mãe! O pai atirou no macaco e ele gritou: Jeromo! Você me matou Jeromo!

A mãe agora tem certeza que ouviu o que ouviu. Desde a primeira vez as palavras estavam corretas quando entraram pelos seus ouvidos, mas não faziam sentido e só por isso ela duvidou delas, das palavras ouvidas. Sabe que o seu menino falou direitinho o que ele achou que devia de ser falado, mas o coitado está variando das idéias por conta de alguma confusão aprontada pelo pai lá no meio do caminho que leva pra fazenda do Levi Américo. E não foi coisa pouca a julgar pela agonia do marido. Jeromo está aperreado, andando sem parar! Quando para é nos cantos da casa e mesmo assim não fica quieto, fica com comichão no cocuruto, fica afundando os dedos no couro cabeludo como se pudesse desembaralhar as idéias na base da coçada. A mulher espera o marido atravessar mais uma vez o pequeno cômodo, e antes que ele volte a coçar a cabeça ela pede uma explicação:

- Jeromo, o que é que esse menino está dizendo Jeromo?

O marido fica amuado no canto, fugindo da luminosidade do lampião a querosene. Ele bem queria responder a verdade, mas teme que a verdade seja dita em voz alta. Ele diz para si mesmo: "queria que a verdade não fosse verdadeira!". O desespero faz moradia dentro da sua cabeça e zomba de seu pensamento: "Toda verdade é verdadeira, não tem jeito dela deixar de ser o que é para se transformar em algo diferente". Jeromo balança a cabeça afirmativamente concordando com o próprio desespero. Sim, não tem como modificar a verdade. Ele cisma com a idéia de que pode ter se enganado, pode não ter cometido a desgraça que está pensando. Como é que ele pode ter certeza? Não tem certeza, não foi conferir! Quem sabe ele não fez besteira e está se amofinando por nada? Novamente o desespero se manifesta: "Fez sim". E que besteira meu Deus! O homem olha para o chão esquecido de responder a pergunta que a mulher lhe fez, ele continua mudo pensando na merda que aprontou. Onde é que ele tinha aprendido a ser tão burro? Não foi com o pai nem com o tio Gersino, caçadores experientes. O tio foi quem deixou de herança a cartucheira e todos os apetrechos de caça - Deus o tenha! Pensa na morte do tio e os pensamentos voltam para o malfeito do dia. Maldição! E agora? Vai fazer o que para desfazer o malfeito? Não tem como desfazer. Esse malfeito lhe servirá por companheiro eternamente, vai ser sua agonia em sonhos, em pesadelos, nas noites, dias e até depois da morte. No dia do juízo final esse malfeito estará na balança fazendo peso contra suas boas ações. "Deus me perdoe!" e seu desespero responde debochado: "Não matarás! Não tem perdão, não tem não". Jeromo bate na própria cabeça para nocautear o desespero. Não pode ficar se amofinando, precisa ter certeza, tem que procurar ajuda. Melhor conversar com o Chico. É noite, seu concunhado deve estar se deitando. É o caso de perturbar o sono do pobre com essa história? É o caso de ficar dois sem dormir por conta da burrada de um? Jeromo releva a decisão, não vai procurar o Chico uma hora dessa, já pensou muito na besteira que acha que fez e já passou da hora de começar a pensar noutras coisas. Nada de perturbar quem está em paz. Atravessa para o outro canto da casa tentando espantar o desespero, mas ele fica batucando dentro da cabeça, fica segurando seus pensamentos, dançando com o malfeito. Jeromo se cansa de ficar sozinho com o próprio desespero e decide que o melhor é falar logo com o Chico e saber o parecer dele. Mas a mulher vai querer saber aonde o marido vai essas horas. E fazer o que? Se disser que tem urgência ela vai querer saber que urgência é essa; se mentir que não tem urgência ela vai dizer que o marido deve deixar para quando amanhecer. Diacho! A mulher observa o marido se levantar e ajeitar as calças na cintura como sempre faz quando está incomodado com algo. Ele ainda não respondeu sua pergunta. Jeromo cruza novamente o pequeno cômodo e fica de pé ao lado do filho que está com o pé enfaixado, amarrado com os restos do lençol velho. Olha para o pé do coitado e se recorda que deve responder algo que o menino falou, não se lembra da pergunta. Vira seus olhos para Albertina, sua esposa, em busca duma luz. A mulher o encara, parece que ela também espera por uma resposta. Jeromo se confunde ainda mais e depois de alguns segundos acaba se lembrando que esqueceu de responder foi a ela. O marido busca na memória a pergunta que a esposa fez, é sobre o macaco que ele atirou lá na mata! Jeromo não vai responder a verdade, mas também não vai mentir para a mãe de seus filhos. Também não vai sair de casa uma hora dessa, já passou da hora de jantar, deixando a mulher agoniada por conta duma história sem pé nem cabeça. Ele escolhe uma das respostas que o desespero lhe oferece e a solta enquanto retorna para o canto mal iluminado:

- Nada Bertina! Ele está falando besteira.

(continua na próxima atualização)

 
 

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