COMER ATÉ MORRER
Diogo Bercito
 
Série: O Taxista Fantasma do Leblon

 

Se Tiago temia que alguma coisa não fosse conforme o planejado naquele dia, se deu mal. É a mesma história de sempre, no final das contas: esse alguém para, pensa que o dia não pode dar errado e acaba que dá. Ele pensou "preciso estar em casa as sete". Era seu primeiro encontro. Mas Tiago nunca voltou.

Ele queria comprar um livro, a priore; sua mãe lhe mandou ir sozinho, porque não podia levá-lo naquele dia ao shopping. Ele foi, tranqüilo. Desceu até o térreo, foi pra calçada e andou até o ponto onde pegou o ônibus. Cá entre nós, desde que ele ouvira a história do taxista fantasma do Leblon vinha evitando pegar táxi.

Mas, infelizmente, esse demônio maldito é capaz de sentir o medo, ouvir os ossos rangendo de longe... E ele sabe muito bem escolher suas vítimas. Tiago nunca imaginaria que, depois de pegar o ônibus na rua Afrânio de Melo Franco e chegar no shopping Rio-Sul, ainda estaria sob perigo.

Estava fantasmagoricamente calmo, naquele dia. Super tranqüilo. Andava no shopping respirando ar condicionado, olhando vitrines, olhando pessoas... Até parecia que sua vida era boa, respeitável, interessante... E mais tarde, na festa da Amandinha, ele ia finalmente (já era hora!) dar o seu primeiro beijo.

Sentia-se, no entanto, um pouco culpado. Não exatamente culpado, talvez constrangido. Sentia que só estava feliz porque as coisas ultimamente estavam dando certo. Não que isso não fosse um bom motivo, mas parecia por demais fútil e superficial. E tal felicidade podia acabar num piscar de olhos. Imagina só, qualquer bobeirinha que acontecesse e puf!, já era aquele sorriso e aquele olhar feliz.

Ainda bem que não ia acontecer nada, que ele ia sair dali com o livro da sua futura namorada nas mãos, ia se arrumar pra festa e sair todo arrumado e cheiroso, de táxi (sim, infelizmente, mas ele tinha fé que não encontraria o taxista fantasma!), para a festa.

O livro! Meu Deus, andando por aí ele tinha esquecido de comprá-lo. Subiu as escadas rolantes numa falsa calma e foi até a livraria. Quando entrou, porém, estranhou. Não tinha ninguém lá dentro. Aquela loja enorme, bem iluminada, com livros por todos os cantos, estantes de madeira clara, carpete... tudo só para ele... e nenhum vendedor... Era estranho, definitivamente.

Mas tudo bem. Andou pelas prateleiras, por aqueles livros lindos e novinhos. Pegou o que queria e foi para o caixa, que estava vazio. Achou estranho, entretanto sua decisão foi esperar que alguém aparecesse; podia até sair com algum livro dali, mas derrepente alguma câmera o flagra e já viu.

No balcão do caixa tinha alguns papéis, pra anotar telefone mesmo, e como ninguém aparecia, comeu o cantinho de um. Mais algum tempo se passou e ele foi comendo o papel, até perceber que já tinha comido quase o bloco inteiro. Envergonhou-se, mas o problema era deles, que o haviam feito esperar!

Comeu o bloco inteiro. E o livro que ia comprar. Sua fome era descomunal... Já sentia o papel revirando no seu estômago, meio confuso. Foi então que ouviu passos atrás de si mesmo. Virou, não viu ninguém e começou a procurar por entre as estantes de livros.

Correu um bom tempo atrás da pessoa que estava fugindo dele, de um lado pro outro, até que sentiu uma mão gelada pousando no seu ombro. Olhou pra trás e viu seu maior pesadelo: a caveira, o fantasma, o demônio! Ele, o taxista! O medo que sentiu não vinha da imagem daquele ser feito de ossos com um chapéu de motorista, não!, vinha do que ele sabia que ia acontecer consigo.

Recuou e tropeçou num livro, ficando totalmente à mercê dele. Podia ouvir os ossos do fantasma fazendo tlec tlec. Mas, com uma voz cordial, ele lhe disse, quase doce:

- Ei, calma, menino. Pode continuar comendo meus livros, fique calmo.

- Não, obrigado, na verdade... - ele respondeu, aflito

- EU DISSE COMA! - a caveira gritou.

Tiago pensou, pensou e resolveu comer mesmo. Depois ia embora e nunca mais voltava. Mas assim que terminou de comer um livro inteiro, o taxista lhe ofereceu outro e mais outro e, assim que passou pela sua cabeça a idéia de que bastava comer todos eles, viu que o monstro estava rindo feito criança enquanto riscava um livro em branco com seus dedos afiados, concentrado.

- O que você está fazendo, senhor taxista fantasma?

- Eu? - ele lhe respondeu, alegre - Eu estou escrevendo um livro para você comer. Sabe porque?

- Não - Tiago respondeu, curioso.

- Porque assim você vai comer para sempre. Para sempre, ouviu? - e desandou a rir, todo animado.

Tiago fez que não, tentou sair da loja. Mas o vidro parecia indestrutível e sua vontade, fraca. Voltou para perto dele, sentou-se e começou a comer o livro que ele acabara de escrever. Enquanto isso, a caveira escrevia mais e cantava:

- Vai comer pra sempre! Vai comer pra sempre! Vai comer pra sempre! Comer até morrer!

 
 

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