TADINHA DA CLEUZA!
Rutinaldo Miranda B. Junior
 

Cleuza se encaixava no perfil da mulher moderna.Indepen-dente,culta,dona do próprio nariz e,aos trinta e quatro anos,...encalhada.Tadinha da Cleuza!Diante das evidências que estava ficando pra titia,até que andava se esforçando.

Passara a frequentar toda boate e clube de dança que encon-trava pela frente.E,lá ficava sentada,sozinha numa mesa,jo-gando o cabelo pro lado,fumando cinematograficamente.Acalen-tando a esperança que alguém a notasse.Mas,homem que era bom,nada.Verdade seja dita,a noite não passava em branco. Sempre surgia um engraçadinho com a promessa de uma noitada inesquecível,regada a colchão d'água,teto espelhado,cama vi-bratória,etc.Certa vez,no Clube de Dança Buraco Quente(olha onde a Cleuza foi parar!),seus ouvidos foram testemunhas de uma proposta sadomasoquista.Ela vestida de BatGril,chicote em punho,distribuiria lapadas calientes nele,o velho desca-rado de terno e gravata,ar sério,sentado à sua frente,que rolaria no chão vestido de Pantera Cor-de-Rosa.Refeita do choque,Cleuza tinha uma estratégia para esses tipos de can-tadas.Fingia não ter ouvido,deixava o sujeito falando sozi-nho,colocava a bolsa no ombro,ia para casa.Já estava se acostumando com a idéia de ser uma solteirona.Mas,dos fi-lhos ela não abriria mão.Quando eles perguntassem quem era o pai,diria,revoltada,que recorrera à inseminação artifici-al,pois os homens tinham desaparecido da face da Terra.As-sumiria uma produção independente.Seria fácil,bastava dar uma olhada nos jornais.Estavam cheios de clínicas especia-lizadas.Após alguns contatos,chegou à conclusão que fazer um filho em laboratório custava caro.Se não fossem a última lipoaspiração,as prestações do carro novo,do apartamento, bem que sua conta bancária não estaria no vermelho.Tadinha da Cleuza!Sem homem nem dinheiro pra ter um filho.Restava tomar medidas extremas.Vestir uma carapuça,sair pelas madru-gadas.Pular em cima e estuprar o primeiro que encontrasse pelo caminho.Não,não podia se submeter a isso!Era uma mu-lher sensata.Outros meios deviam existir,certamente.Folhean-do os classificados,encontrou a seção de "trabalhos".Então, resolveu consultar o Pai Zeca de Ogun.Afinal,ele atava e desatava,fazia e desfazia.Tudo garantido ou a pessoa rece-bia o dinheiro de volta.Uma voz feminina com sotaque espa-nhol fajuto agendou a consulta.

Cleuza chegou ao terreiro no dia e horário marcados.Um preto velho fumava seu cachimbo sentado debaixo de uma enor-me mangueira.Apareceu uma assistente e a levou até o velho. Cleuza sentou sobre as folhas secas.O preto pegou ao lado uma garrafa de pinga,deu um gole.Ofereceu a Cleuza que recu-sou.Ofereceu novamente.A assistente informou que,se ela não bebesse,o santo não baixava.Tadinha da Cleuza!Pensou que iria morrer ao sentir a pinga descendo a goela e rasgando os bofes.Ficaram alguns instantes em silêncio,até a assis-tente explicar que,se o cheque não fosse assinado antecipa-damente,o santo também não baixava.Cleuza tinha esquecido o talão.A assistente,sorriso em pessoa,disse não ter proble-ma.Pai Zeca aceitava cartão.Finalmente,após entregar o car-tão,o santo baixou.Arregalando os olhos,Zeca de Ogun falou que teria de fazer um trabalho forte,já que a cliente tinha um encosto de pombagira sapatona.Consistia em amarrar a bo-ca de um sapo com uma calcinha dentro.Mas,não um sapo qual-quer.Tinha que ser um sapo-boi da barriga amarela.Bicho di-fícil,manhoso,que só dava as caras em noite de lua cheia.E, como o preto velho estava muito velho para andar atrás de sapo,caberia a Cleuza conseguir o bicho.

Lagoa da Barriguda,vinte e sete de setembro,noite de lua cheia.As câmeras da Organização Não-Governamental Amigos do Mato estavam cuidadosamente camufladas para filmar o rarís-simo Strupicius Strupicius,polularmente conhecido como sapo-boi da barriga amarela.Tudo corria bem,quando apareceu uma maluca,não se sabe de onde,e pulou sobre os pobres dos sa-pos.Imediatamente agarrada,foi levada pra delegacia.Diante da fitas,o delegado não teve dúvida.Era integrante de uma quadrilha internacional de traficantes de animais com sede na Tasmânia.Presa com a prova do crime,um sapo-boi macho, Cleuza teve sua foto impressa nas páginas policiais.Pior que isso,foi saber pelo seu advogado que,sendo um crime ina-fiançável,ficaria trancafiada junto com aquele sapo pelo me-nos uns vinte dias até o julgamento.Tadinha da Cleuza!Tadi-nha mesmo!Até eu,que escrevo esta história,acabei ficando com pena dela.Por isso,resolvi dar uma força.Acontece que durante esses vinte dias,nos quais Cleuza olhava pro sapo e o sapo olhava pra Cleuza,surgiu,digamos,uma amizade entre os dois.Absolvida depois de descobrirem que o pessoal da ONG fazia,na verdade,pirataria biológica,Cleuza saiu da ca-deia com seu novo amigo.Então,aconteceu o improvável.O sapo começou a falar.

-Dá um beijo.

-Quê?!

-Dá um beijo.

-Ai,meu Deus,pirei de vez!

Iria processar o Estado.Todos eram testemunhas que en-trou na prisão sã.Quer dizer,nas condições em que foi pre-sa,corendo atrás de sapo em plena madrugada,deveriam tê-la encaminhado ao menos para um psiquiatra.Não a trancar naque-la gaiola,sozinha,tendo um sapo por companhia.O resultado é que seu juízo não aguentou.Agora estava vendo o sapo falar, pedir beijo.Fazer beicinho com aquela boca pegajosa.

-Dá um beijo.

-Nããooo!

Foi impossível não notar a tristeza no semblante do sapo que se afastou cabisbaixo.Cleuza sentiu uma ponta de remor-so.Afinal,ele foi sua companhia nas noites solitárias,um ou-vinte atento de suas queixas e acabou tratado daquela for-ma.Porém,dar um beijo naquela boca viscosa da qual saia uma língua quilométrica em direção a moscas desprevenidas... pa-ciência!Podia negociar.Quem sabe um abraço?Chamou o sapo que veio saltitando.

-Dá um beijo.

-Não,um abraço.

O bicho ficou por instante pensativo,mas acabou consen-tindo.Cleuza o apertou contra o peito.Fechou os olhos.O sa-po,malandro,aproveitou a oportunidade,saltou no seu rosto e deu uma bitoca.Sentindo a baba fria nos lábios,ela abriu os olhos para estrangular o bicho,só que não acreditou no que viu.À sua frente,imóvel,estava o Antônio Fagundes.O galã da televisão,quem diria!,não tinha sido sequestrado como todos pensavam.Fora vítima,sim,de uma fã despeitada que encomen-dou uma mandinga poderosa ao Pai Zeca de Ogun.Transformado em sapo,Fagundes literalmente caiu na sarjeta.Por uma via de esgoto clandestina,descambou na Lagoa da Barriguda.Tudo isso,entretanto,era passado.Livre do feitiço,o que ele que-ria mesmo era ficar junto de sua alma gêmea,a Cleuza.Para tirar o atraso,ela marcou o casório logo para o mês seguin-te.E,foram felizes fara sempre.

 
 

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