NÃO SIGNIFICA NÃO
Carlos C. Alberts
 
 

Singal, o mais forte de nós (tão forte que tinha alcançado a idade onde os cabelos ficam cinzentos), não parecia o mesmo. Ombros caídos, cabeça baixa, olhando para o fogo mas sem realmente vê-lo. Por mais que quisesse adiar, sabia que sua tarefa naquela noite não podia ser evitada. A pior tarefa de sua vida. Encheu os pulmões, como que para recolher a força do ar, levantou a cabeça e, com sua voz grave, disse:

“Mertel, Primeiro da Caça e da Emboscada. O Conselho dos Homens do Clã do Dente de Sabre, depois de discutir por um dia e uma noite, chegou a uma conclusão.Com a inspiração de Hodrun, o espírito da Carne e com a ajuda de Vinar, a erva do conhecimento, mascada durante o jejum, os Homens decidiram que a punição por seu crime é a morte no Grande Poço da Caverna Pintada.”

Singal falara num volume muito mais baixo que o usual. Mas todos do clã ouviram-no claramente. O silêncio não era somente pela gravidade da situação. Era em respeito à dor de seu líder. Todos sabiam que Mertel era o melhor amigo de Singal. Mais que um irmão. Sabiam, também, que todos acabariam pagando pela punição. Sem Mertel, as caçadas seriam muito mais difíceis. Haveria menos carne e, ao mesmo tempo, mais caçadores feridos. A lança de Mertel era a mais certeira, principalmente porque ele era o mais corajoso e, assim, chegava mais perto do bisão, do rinoceronte lanoso e, até mesmo, do mamute. Com um primeiro golpe certeiro, a tarefa dos outros caçadores era somente a de subjugar o animal. Isso evitava que tivessem que tentar outra vez, por que não havia falha. E evitava que o animal revidasse, por já estar mortalmente ferido, poupando, assim, os caçadores. Ainda assim, todo o clã sabia que não havia outra punição possível. Para o pior dos crimes, pior até que o assassinato, a única punição era aquela.

Mertel ouviu a sentença impassível. Era ainda mais alto que o Líder. E, se não fosse por aquela situação, certamente também atingiria a idade dos sobreviventes. A idade onde as potencialidades dos jovens teriam sido testadas a ponto de serem confirmadas, ou não, como quase sempre acontecia. A idade dos cabelos cinzentos. Relativamente comum entre as mulheres mas raríssima nos homens.

Os membros do clã ainda lembravam do dia em que Mertel foi acusado, há duas luas atrás. Ele não negou. Lembravam com Singal argumentara com o amigo, na frente de todos.

“Você pode ter qualquer mulher. A qualquer hora. Por que fez isso? Por que forçou Nazara a deitar com você?”

Mertel ainda tentara se explicar.

“Eu não a forcei, realmente. Ela queria. Todas querem”

“Mas ela não disse ‘não’, quando você a convidou?” perguntara o Líder.

“Bem, ela disse ‘não’. Mas você sabe como são as mulheres. Elas falam ‘não’ querendo dizer ‘sim’, não é?”

Ao ouvir isso do amigo, Singal virara o rosto e cuspira no chão. Olhara-o com desprezo e falara: “Você está errado, Mertel. Não significa não.”

Ao ver a reação do Chefe, Mertel mudara de atitude. Com um sorriso displicente, também virara o rosto e cuspira.

“Você quer mesmo saber por que eu fiz aquilo?” perguntara o acusado. “Eu fiz porque eu posso. Porque eu quis. E porque ela não quis. Eu nem estava com tanta vontade. Eu quis mostrar quem manda, quem decide.”

Singal, o Líder do Clã do Dente de Sabre e Senhor das Peles e dos Ossos, virara as costas e declarara para todos ouvirem: “Mertel será um Sonâmbulo. Ninguém falará com ele. Ninguém o tocará. Todos se afastarão quando ele se aproximar. Até o dia em que o Conselho dos Homens decidir seu destino”

Agora, depois da decisão, os membros do clã lentamente se afastaram do fogo, indo em direção à Caverna Pintada. Quatro homens, empunhando galhos secos para não o tocarem, indicavam o caminho ao condenado, enquanto os caçadores usavam tochas para iluminar o caminho. Depois de cerca de duas horas de caminhada, ao chegarem à entrada da caverna, pararam.

Somente Singal, os quatro condutores, mais dois homens com tochas e o Guardião da Corda, além de Mertel, o Sonâmbulo, entraram. Caminharam pelos amplos salões da caverna. As tochas iluminavam as paredes com pinturas dos animais que pareciam vivos, ou ainda, mágicos. Ao contemplar o cenário, Singal derramou uma lágrima. Aquele era um dos seus locais favoritos. Desde crianças ele e Mertel vinham aqui, nas noites de festa e agradecimento, admirar os maravilhosos animais. Pintados há tanto tempo que ninguém sabia se tinham sido feitos por homens ou deuses. Foi lá que Mertel decidiu ser um Primeiro Caçador. Foi lá que Singal soube que teria que arrumar outra função. Aquela já tinha dono. Nunca imaginou que um dia odiaria este lugar.

Quando chegaram no fundo da caverna, junto ao grande poço, que sempre causara calafrios nas crianças, inclusive em Singal e Mertel, o Líder levantou as mãos. Todos pararam e ele falou: “Neste momento final, Mertel deixa de ser um Sonâmbulo. Nós falaremos com ele e ele responderá” Virando-se para o amigo, não pode deixar de notar como sua face ainda parecia com a do menino com o qual tanto brincara. Esperou um instante para recuperar a coragem e falou: “Mertel, você tem o direito de escolher como vai descer ao poço. Poderá ser empurrado. A queda será relativamente rápida e, quando atingir o fundo, você morrerá instantaneamente, sem dor. Poderá, por outro lado, se tiver coragem, ser baixado lentamente com a corda. Você levará uma tocha e poderá observar os restos dos outros criminosos, quando chegar ao fundo. Terá tempo para refletir sobre seu crime. Você morrerá de fome ou de loucura”

“Prefiro ser baixado pela corda” respondeu Mertel.

“Por demonstrar coragem, seus filhos não serão mortos e suas peles e armas não serão queimadas, mas sim distribuídas entre suas mulheres.” Ao dizer isso, Singal aproximou-se do amigo, sacou de sua adaga de pedra e cortou a trança de seus cabelos. “Seu cabelo será entregue à mulher que violentou”. Num gesto inesperado, entregou a adaga a Mertel. “Isto é para que você evite a loucura” disse o Chefe e afastou-se.

O Guardião da Corda aproximou-se, envolveu uma das extremidades do cabo de fibras em volta do abdômen de Mertel. Este se encaminhou para a borda do poço, olhou para o amigo e mostrou a faca, em gesto de agradecimento. Todos os outros seguraram a corda e, com uma das tochas na mão o Primeiro Caçador do Clã do Dente de Sabre foi baixado lentamente. Ao atingir o fundo, coberto por ossos de homens e animais, desprendeu a corda, que foi puxada de volta.

A corda foi novamente enrolada e os homens deixaram a caverna. Ao encontrarem os outros, todos seguiram silenciosamente para junto do fogo. Todos imaginaram Mertel no fundo do poço. Pensaram nas dificuldades que passariam por seu desaparecimento.

Mas todas as mulheres do clã dormiram mais pesadamente, aliviadas por perceberem, mais uma vez, como eram amadas, queridas, importantes.

 
 

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