CAIM E A BELA
Claudio Alecrim Costa
 
 

O ar estava tépido e eu seguia em direção a casa de Salik para uma reunião com seus amigos poetas. Eram todos chatos. Sentiam-se melhores do que qualquer um e dissimulavam uma fraterna amizade. Dava-me náusea, mas não podia deixar de ir. Devia isso ao Salik. Ele era suficientemente indiferente comigo para aceitar minha angústia permanente. Não sei como conseguia se divertir ao lado de uma pessoa como eu. Às vezes, lia Whitman para me agradar.

Quando cheguei, fui recebido com festivo abraço que me deixou amarrotado e sem jeito diante dos olhos que me atravessaram como lanças. Havia umas 10 pessoas na casa espaçosa, herança da maldita avó de Salik que assombrava aquele lugar desde sua morte.

- Afonso!

- Oi.

- Pessoal esse é Afonso, meu grande amigo e um grande escritor.

Tive vontade de matar lentamente Salik até ver seus olhos saltarem das órbitas. Detestava apresentações cênicas, que me deixavam com a boca seca e mãos geladas. Não conseguia suportar a evidência. Rezava todas as noites para ser esquecido. Invejava a figura de um homem solitário numa ilha.

- Olá! Eu sou Patrícia...

É preciso descrever essa garota. Era como uma porcelana e merecia cuidado. Tinha olhos que se confundiam com o mel. Um jeito infantil, mas que deixava ver, por pequenas brechas em sua alma, uma mulher pronta para a vida. Isso me atraiu tanto quanto o jeans que lhe apertava o corpo delgado e que se contorcia quando ria.

- É um bonito nome.

- Você é escritor?

- Tenho alguns trabalhos publicados.

- Nunca vi nada seu.

- Melhor assim.

Ela riu e tirou o farto cabelo que caia sobre seu rosto. Um movimento sensual e meio desajeitado que me encantou.

- Afonso, venha conhecer os outros!

Salik me arrastou para o centro da sala onde se espalhavam as pessoas, uns sentados no chão, outros jogados sobre o sofá.

- Esse é Caim. Vocês precisam conversar, Afonso. Ele é um dos mais brilhantes romancistas que já vi...

O cara além de matar o irmão tinha um ar blasê tão insuportável que cheguei a engasgar com a bebida, quase vomitando sobre o tapete horrível que decorava aquele sombrio lugar.

- Oi, Afonso. O que você escreve?

Senti que não existia interesse algum. Era apenas protocolar. Poderia ser um mensageiro da morte pela frieza e uma certa ironia bem disfarçada.

- Não sei.

- Como pode isso? Vocês ouviram?

Parecia a cena de um filme de terror que havia assistido. Ele brevemente morreria. Mas não era um filme e tentei resistir a teatro grotesco.

- Qual o seu gênero literário? - Perguntou-me alguém que não consegui ver direito.

- Não sei.

Todos riam e cochichavam. Salik tomou minha defesa, brilhante que era.

- Afonso escreve contos. É um gênio. Só não se deu conta disso ainda.

- Eu li um conto seu - Continuou Caim.

- Gostou? - Salik perguntou por mim.

- Desculpe, mas devo ser sincero. Não há motivo para continuar.

Era definitivamente uma provocação que me deixava sem fôlego. Tinha que enfrentar a situação, mas sentia-me acuado e nervoso. Expulsei as palavras de minha boca como um vômito necessário.

- Penso da mesma forma...

Uma estupefação tomou conta de todos e eu pude prosseguir.

- Na verdade, fiquei surpreso um dia...

- O que aconteceu? Alguém publicou essa bravata? - Atirou novamente o impiedoso Caim.

- Não é isso. Um grande escritor que todos aqui conhecem olhou alguns textos meus e disse que eu era um escritor pronto.

- Bravo! - Gritou Salik.

- Quem é esse escritor tão generoso? - Voltou a atacar o assassino bíblico.

- O que posso dizer é que esse nobre homem transcendeu sua obra e língua, sendo editado em vários países do mundo. Por outro lado, não me permito dizer ou mencionar seu nome.

Era visível a ansiedade elétrica que tomou conta do lugar. Todos murmuravam e falavam entre si. Patrícia, com seus doces olhos, prestava atenção ao duelo. Era meu anjo. Estava discutindo com aquele idiota talvez por ter Patrícia para me guardar.

- Isso é ridículo! - gritou, colérico, o nefasto.

- Me desculpe.

- Não existe nenhum escritor tão famoso que possa elogiar algo tão tosco.

- Como fala assim de meu amigo, Caim?

Salik tentou reagir, mas logo se calou. Não tinha vocação para atos heróicos e estava apenas tentando, no fundo, tirar a atenção de mim. Tentava me salvar através de sua própria pele. Mas o desgraçado queria briga...

- É um idiota!

- Tenho uma dedicatória do escritor que me chama de gênio.

- Quem é esse imbecil? Fale! Na certa está inventando.

- Pense o que quiser. Para mim já sou um escritor consagrado por ter merecido esse elogio nas palavras de homem tão incomum. Ainda assim, mantenho em segredo seu nome, mesmo sem ele ter me pedido tal coisa.

Enfurecido, Caim, largou seu copo sobre a mesa e saiu sob os olhos atônitos de todos.

Salik, como bom anfitrião, foi tentar acalmar os ânimos do diabo do convidado...

Patrícia, abraçando seu próprio corpo, chegou discretamente perto de mim e perguntou:

- Agora que estamos livres daquele babaca, você poderia me dizer quem é esse tal escritor? Adoraria saber, juro...

- Esse escritor simplesmente não existe.

- Como assim?

- Não existe escritor algum. Era tudo mentira.

- Você está brincando comigo?!

- Não. É que eu queria ver aquele arrogante pelas costas e inventei um capricho.

- Agora já temos nosso próprio segredo... Responde-me ela, para minha surpresa. - E prometo não contar prá ninguém... Sorria.

- E nem poderia: nem mesmo eu sei quem é o tal escritor...

E desatamos ambos a rir de tudo, como duas crianças que acabavam de fazer uma grande e inocente trela...

A bela Patrícia, cuja doçura e meiguice me encantaram desde o início, no final mostrara-me, sem o saber, como a vida pode ser bem melhor...

 
 

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