TU...TU...TU...
Daisy Melo
 

Um pontinho preto no teto da sala. Só um pontinho. Um sujinho? Estava deitada de barriga para cima no tapete marrom. - Não tem mais nada a fazer a não ser observar um pontinho preto no teto da sala? Senta em posição de lótus, acende um cigarro, sorve a fumaça espiralada. O telefone toca de repente. Sobressalto. Como se não esperasse por aquilo.

- Oi...?

- Oi.

- Só liguei para dizer adeus.

- Por que você ligou?

- Para dizer ad...

- Isso eu sei, porra! Exalta-se. Inspira arrancando das vísceras uma calma inexistente - Isso você já disse -,expira. Mas por que ligou? Não seria suficiente só ir embora?

- Queria ouvir a sua voz.

- Para quê?

- Só ouvir.

Bate o telefone com brutalidade. Canalha! Volta a se deitar no tapete. Engraçado... parece que o pontinho preto mudou de lugar. O telefone toca, novamente. Dessa vez, sem sobressaltos.

- Por favor não desligue.

- Por quê?

- Você não imagina o que estou sentindo.

- Imagino... disse num tom irônico. Imagino...

- Eu não sei como tudo aquilo aconteceu, juro... eu não sei o q...

Pousa - dessa vez, delicadamente - o fone na mesinha, serve-se do vinho. Já está meio bêbada, não importa. A voz do outro lado continua a falar e é como um visgo que atravessa o fone e gruda no coração como gaze no machucado. Olha para cima e nota, curiosa, o pontinho andando pelo teto, descendo pela parede. Ela o segue com o olhar adivinhando-lhe o percurso. A voz não pára, despeja dor e culpa num ouvido oco. Um discurso que ela já conhece.

O pontinho parou. A voz também.

Anda até a varanda da sala. É madrugada e os carros passam apressados enquanto o Cristo Redentor perde pouco a pouco seu brilho de fantasma. O dia está nascendo e mancha de vermelho o horizonte recortado com as silhuetas escuras dos arranha-céus.

Volta e pega o fone com cuidado. A voz percebe e indaga num fio: - você está aí? - Sofre intensamente, mas enquanto dor, mágoa e vinho, cataloga perdas e danos e os deposita em compartimentos fechados dentro do peito, se desprega devagar da pele velha e rota. Como uma cobra.

O pontinho preto voa atravessando a porta aberta da varanda e ganha o dia. Evitando ouvir novamente a voz que continua tropeçando em silabas e desencontros, coloca definitivamente o fone no gancho.

Fim do contato.

Tu...Tu...Tu...

 
 

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