JUZEFINA
Edson Campolina
 
 

Passaram-se dois dias e o forno de barro não parou de assar o sustento da viúva. A vida precisava continuar até que Juzefina se cansasse, ou Ele a quisesse lá em cima. Era assim que ela passava sua vida, sobrevivendo de quitutes e esperando o chamado divino. Mas não se abatia, como nunca se abateu, com as dificuldades lhe impostas pelo destino. Juzefina perdera os filhos nos partos, sequer um vingara. Perdera o marido desgostoso com a lida na roça e a falta de uma prole. Sozinha, a mulher manteve o suficiente da lavoura para sua subsistência, pois não tinha outra opção que não sua velha casinha, seu forno e a roça à beira da pequenina Marinésia.

A viúva quituteira, já rompendo seus sessenta anos, era reconhecida pelos dotes culinários, sua solidão e luto, sua garra e independência na lida. Nunca precisou de outro homem, ou não o quis. Certo é que fechou a porteira de bambu de sua morada para qualquer par de calças. Sequer recebia o vigário, caso não fosse registrar encomenda para uma quermesse qualquer. Abandonara também a igreja com a morte do marido, pois não alimentava mais esperanças nem buscava qualquer salvação, aceitara suas agruras como provações.

Era dia de catar a lenha no cerrado, Juzefina tomou a estreita trilha que contornava a colina nos fundos de sua gleba. Naquela manhã o sol cedo já castigava, abafando o cerrado com o vapor que brotava da terra seca, e ainda assim Juzefina não dispensara seu luto surrado. Seguia em seus passos ainda firmes em busca dos galhos caídos. Um lençol velho e rasgado, torcido por inteiro, faria a rudia que lhe protegeria a cabeça do peso do feixe de lenha. Andou por quase hora até se embrenhar pela mata do cerrado separando os paus a serem apanhados na volta do caminho.

Ofegante, sentou-se à sombra de uma aroeirinha e secou o suor do rosto enrugado. No frescor e no silêncio da mata ela sentia-se ainda mais só, pois não era invadida pelas lembranças que habitavam seu casebre, e que ela tentava afugentar tornando menos longos seus dias. Tirou do bolso de seu vestido preto algumas gabirobas apanhadas à beira da trilha e enganou sua sede com a doçura das frutas. Retomou a normalidade de sua respiração e começou a tirar tiras de cascas de árvores para amarrar os paus e gravetos. Firmou a rudia na cabeça e tomou o caminho de volta. Catava os galhos separados à margem da trilha. A cada parada desfazia o laço das tiras de pau e acrescentava um graveto ou galho até que não agüentasse mais descer e subir o feixe à cabeça. Calmamente seguia sua jornada pela mata percebendo o silêncio incomum que tomava aquela manhã. Não havia pássaros cantando, latidos distantes e até o vento parara de assoprar as copas magras do cerrado.

Descera quase toda a colina e aproximava-se do pequizeiro da divisa de sua gleba quando avistou à sombra da árvore um homem também de luto, chapéu de feltro preto, sentado de costas para o caminho e picando fumo na palma da mão. Apreensiva, encurtou o passo para melhor observar e medir suas intenções. Seu duro coração acelerava numa desordem nunca sentida antes. Ela que perdera o medo da vida enfrentando a todos e até a si mesma sentia na aproximação um frio que lhe arrepiava os cabelos do corpo. Levantou seus passos evitando arrastar as sandálias de couro no chão duro. Encurtou a respiração. Procurou o mínimo de barulho para não alertar o estranho.

Ao atingir a sombra do pequizeiro, que cobria parte da trilha, um vento gelado lhe atingiu a espinha trazendo consigo um fedor estonteante. Juzefina soltou uma das mãos do feixe de lenha e agarrou o pequeno crucifixo de madeira que sempre carregou no pescoço. Ficou paralisada de susto, de costas para o homem que não se virou mantendo-se cabisbaixo e escondendo sua face na escuridão da aba do chapéu.

_ Valei-me minha Nossa Senhora. Cruz credo!

O homem ressoou um rugido grave.

_ Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador do Céu e da Terra. E na Virgem Santa...

Juzefina tentou retomar os passos rezando seu Credo, mas parou no segundo verso ao ouvir a risada do homem seguida de sua ironia:

_ Eu também mulher. E já sabia de sua crença.

_ Pois é só a Ele que eu temo, seu Tinhoso.

_ Pois se teme, porque chama por Ele todo dia?

_ Pro meu descanso eterno.

_ Então chamas a comadre morte também. Julga-se preparada?

_ Pras vontades Dele eu preparei minha vida e minha morte.

_ Mas nem tudo foi vontade Dele. Foi eu quem buscou seus filhos e pôs a noite nos olhos de teu marido.

_ Meus filhos não tinham pecado. Subiram pro paraíso como anjinhos.

_ E teu marido?

_ A morte não é comadre de ninguém. Tu andas sozinho como um cão banido.

Juzefina tremia. Nem mesmo sentia o peso da lenha sobre a cabeça. Sua mão doía com a cruz apertada na palma. O Tinhoso ria debochado e soltava grunhidos medonhos.

_ Estás sofrendo o castigo Dele, vagando e destinado a atazanar os pagãos. Nem tens coragem de se mostrar. O que quer desta velha?

_ Sua alma pra minha morada.

_ Já tem dono.

_ Eu tomo.

_ Alma não se toma, nem corpo.

_ Mas se doma.

_ Ele já domou, por isto não tem pressa comigo.

_ Ele te esqueceu.

_ Mas eu não esqueço Dele.

_ Desistirás e só terá a mim.

_ Tua conversa não me atenta. Não sou Eva que tu iludiste.

Juzefina retomou seus passos, tentando ignora-lo. O Tinhoso permaneceu como estava, mas sua voz a acompanhava. Ela jogou o feixe por cima da cerca de seu quintal e arrastou-se por baixo dos arames, sem olhar pra trás. Estava firme em suas convicções.

_ Não adianta fugir.

_ Não preciso. Sabe onde moro.

_ Estarei lá te esperando.

_ Não és digno de lá, nem bem-vindo.

_ És tinhosa como eu.

_ Atentou a alma errada.

_ Tua alma é como esta terra dura, nem o sol racha.

_ Então já sabes, belzebu, que com mulher não se brinca. É por isto que tu és masculino, se fosses feminino já terias dominado a terra. Toma teu desatino e me deixe.

_ Ele também é masculino.

_ Mas é o Criador. E percebeu a fraqueza em Adão, não fosse por esta fraqueza até tu ainda estarias no Paraíso.

_ Voltarei numa manhã derradeira pra lhe mostrar o caminho do inferno.

_ Tua vontade não faz minha sina.

_ Velha teimosa.

_ Desiste seu Tinhoso. Só a Eva que conseguistes enganar, e já deves estar arrependido.

_ Arrependimento é para os fracos.

_ Não. É para os fortes que aceitam os erros.

_ Meu erro é ter lhe dispensado minha atenção, viúva teimosa.
Juzefina chegou à porta de sua cozinha, deitou o feixe de lenha na soleira e virou-se a procura do Tinhoso. O pequizeiro no pé da colina ardia em chamas e uma nuvem de fumaça formava o semblante de um homem que escondia seu rosto, talvez de vergonha. Ela retomou suas ocupações fortalecidas pelos versos:

_ Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador do Céu e da Terra. E na Virgem Santa...

FIM

 
 

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