VITALINA
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

o anjinho barroco cara suja e levada entrou pelo buraco na cumeeira, deu um vôo de reconhecimento pela camarinha e pousou no alto do caritó. mocinha levou um susto mas logo se recompôs e sorriu esperançosa pensando tratar-se de cupido, o deus do amor.

"que novas trazes que possam alegrar o coração de uma pobre donzela encalhada?", perguntou ao entezinho divino que parecia obra do mestre aleijadinho das minas gerais.

o anjo dependurou-se num armador de rede de ferro batido, balançou-se e fez de conta que não ouviu.

mocinha fingiu concentrar-se no bordado para o enxoval de um casamento que não se nunca se cumpria. chegara a uma idade em que nem anjo, nem fada, nem livusia, nem lobisomem a surpreendia mais. quem sabe um noivo. sim, um noivo seria uma grata surpresa. alguém que a amasse e respeitasse. Para calar as bocas maledicentes que a chamavam de coitadinha e a magoavam tanto.

"pensei que fosse cupido e é apenas um moleque de pedra sabão", suspirou desanimada arrematando um ponto. "melhor não se iludir"

àquela tarde frei luiz fábio fabri da ordem dos franciscanos descalços veio de outra freguesia em busca do anjinho fujão do altar-mor da sua capela.

Mocinha pediu-lhe a bênção, beijou-lhe a mão e, observadora que era, percebeu algo avolumar-se involuntariamente sob o hábito marrom de são francisco do sacerdote.

frei luiz percebeu que ela tinha percebido, corou, orou e entregou o seu destino nas mãos de deus: no fim daquela tarde morna renunciou aos votos.

À noitinha tudo se consumou ali mesmo, sob aquele teto de telhas enegrecidas e o olhar maroto e curioso do anjinho barroco fujão da capela de santo antônio do quebra-mar.

 
 

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