BREJO DA CRUZ
Luís Augusto Marcelino
 

"A novidade, que vem do Brejo da Cruz
É a criançada, se alimentar de luz
Alucinados, meninos ficando azuis
E desencarnando, lá no Brejo da Cruz"

Saí do restaurante perto das onze da noite. Tinha de atravessar o Anhangabaú, andar ressabiada pela Líbero Badaró até alcançar a Praça do Patriarca. A estação Anhangabaú não tinha sido construída ainda. Nem outras estações. Esta é uma história do tempo em que Santana e Jabaquara eram os pólos de descarga do amontoado de gente que se espantava com a rapidez e a limpeza do metrô de São Paulo. Meu destino era a Sé. Não havia tantos camelôs como hoje, mas eles já davam os primeiros passos para demarcar seu território. A rua Direita era estreita como é hoje. A maioria das lojas sobreviveu. Mudaram donos, outros donos mudaram de ramo, mas acredito que são os mesmos quem ditam as regras do comércio nesta veia estreita, fedorenta e apinhada de gente durante todo o dia. E perigosa. A estrutura e o espírito são os mesmos. Foram anos e anos percorrendo o mesmo trajeto. Às vezes o viaduto do Chá; às vezes o Santa Efigênia. Raras ocasiões uma travessia perigosa por baixo de um deles, antes que tornassem o Vale do Anhangabaú um lugar transitável para pedestres.

As noites de agosto, naquela ocasião, costumavam ser frias e úmidas. A terra da garoa via seu ícone naquele pedaço de mundo. Sempre um ou outro pedinte erguia a mão trêmula buscando um trocado para quem, como eu, transitava pelo lugar. Uma vez, na estação São Bento, vi uma exposição de fotos da São Paulo dos anos 30. Era tudo tão igual... tudo tão diferente. Eu amava e odiava aquela rota. Não bastassem os oito, nove graus centígrados das noites de inverno para fazerem tremer minhas canelas finas, havia também o medo de ser abordada por um dos vagabundos do Centro. Vagabundos de todas as idades. Uns muito velhos, podres, barbudos, mancos, exalando um fedor indescritível. Outros jovens, bêbados, meio tarados, meio maníacos, também cheirando mal. Crianças que ameaçavam com canivetes, pedras. Tentavam imitar os adultos com sua linguagem ameaçadora, com seus gestos de guerra, seus palavrões impronunciáveis, suas maldições severas. Muitos negros, muitos pardos. Muitos meninos, poucas meninas. Seis vezes por semana eu era atriz daquele cenário. Com o tempo, entretanto, a gente aprendia a sobreviver naquele inferno. Depois de ser roubada quatro vezes, me rebelei. Passei a falar grosso, a usar palavrões, a reagir às tentativas de puxarem minha bolsa, a entrar nos poucos bares abertos e pedir socorro. De quebra, quando isto acontecia, eu ganhava um café dos freqüentadores. Não um café desses comuns que se fazia em casa, com pouco pó e muita água fervente que atravessava o coador de pano. "Coffee". Máquina de fazer "coffee", um requinte para o padrão de vida que tinha na época. Ele vinha espumante, numa xícara grossa protegida por um pires também grosso. Tudo neste mundo tem suas compensações.

O Dia dos Pais tinha passado e, portanto, o movimento tinha caído como a temperatura. Tirando um ou outro bêbado que atravessava a, não parecia uma das noites mais temíveis. Minha sombrinha florida resistia bravamente a mais uma noite chuvosa de Sampa. O gerente do restaurante tinha me ameaçado pelo fato de eu ter chegado duas horas atrasada. Não adiantou o atestado médico do meu filho que levei, nem minhas explicações demoradas e sentidas. "Na próxima, está na rua!" Eu caminhava com aquela frase martelando na minha cabeça. Fernandinho, meu rebento, tinha um problema crônico de asma. Suas crises se agravavam no inverno e, vez ou outra, largava os outros rebentos para levá-lo ao pronto socorro perto de casa. Não adiantava argumentar com o chefe que as filas eram infindáveis, que não tinha médico no PS, que não tinha quem levasse o menino quando as crises se tornavam incontroláveis. Nada adiantava para o seu Tonho. A não ser que eu desse para ele. Eu ainda preservava um traseiro grande e uns peitos aparentemente eretos e ele vivia atrás de uma noite de sacanagem comigo. Sempre me esquivei, desde o início, mas o danado nunca perdeu a esperança de me levar para a cama ou para qualquer outro lugar. A chuva apertou quando estava próxima à Praça da Sé.

Dizem que a Praça da Sé não é o que a televisão pinta de vez em quando. Há um certo clima de alegria, de movimento, de descontração entre os freqüentadores. Nem tudo é martírio, nem tudo é violência, nem tudo é maléfico. Concordo. A Catedral da Sé exala um ar de paz, de religiosidade que parece contagiar as pessoas. Mas que a cola de sapateiro e a maconha - naquela época, porque hoje o que predomina é o crack - rolavam soltas entre os guris, isto é a mais pura verdade. Não tinha mais jeito de eu continuar andando. Entrei numa papelaria antiga. Disfarcei, vasculhando num pequeno balcão uns caderninhos chinfrins, porque os donos de comércio odeiam quando a gente se esconde em seus estabelecimentos sem levar alguma coisa. Pensei até em comprar um caixa de lápis de cor com seis unidades, mas fiz as contas mentalmente e concluí que o mínimo gasto me faria voltar a pé para casa, o que não seria uma coisa racional ou plausível. Uma vendedora se aproximou. "Pois não?" Respondi, meio sem graça, que só estava dando uma olhadinha. Senti vontade de enfrentar aquela chuva mais parruda apenas para não ter que ficar ali, parada, esperando o tempo e os trens do metrô passarem. Cada dez minutos de atraso no retorno para casa faziam doer ainda mais minhas pernas e meus braços, que clamavam por um descanso havia anos, mas que nunca fora plenamente possível. Trocava minhas férias pelo dinheiro relativo ao descanso. Assim como troquei minha vida em minha terra natal, menos confortável, mas talvez um pouco mais segura e previsível. A fome - ora, a fome! - era transponível naquela cidadezinha perdida no interior de Minas. Uma, duas noites de fome seguidas nunca foram suficientes para Deus ou Diabo arrancarem de mim a vida. Comia-se, nas manhãs seguintes, alguma coisa colhida nos matagais, nos riachos ou mesmo na praça da Matriz. Naquele momento me bateu o único orgulho que eu sentia na vida. Fernandinho, meu filho, nunca tinha passado fome. Disso eu me orgulhava. Nem mesmo quando o bandido salafrário do pai o abandonou aos poucos meses de idade, jamais - e isso eu tinha prometido a mim mesmo, nem que fosse para virar puta de zona - o menino foi dormir com o estômago roncando. Eu continuei passando fome algumas vezes, mas muito pouco, e era fichinha para o que já tinha acontecido na minha vida.

Sorri para mim mesma. Enfim, algo que eu poderia me vangloriar. Fernandinho estaria na casa da Vanúsia, minha vizinha que cuidava do menino - a troco de um salário mensal e de umas latarias que eu levava do restaurante onde trabalhava quando os produtos estavam por vencer. Certamente eu reencontraria minhas forças e o recolheria em meu colo até deixá-lo em sua cama ou na minha, porque as vezes ele insistia em dormir comigo. Eu lhe cobriria e lhe daria um beijo na testa pequena. Este era meu ritual diário. Depois lavaria uma ou duas peças de roupa, um copo, um prato, uma panela que estivesse na pia (sempre detestei dormir com a pia suja). Quando a chuva amainou hasteei novamente a sombrinha aberta e me preparei para dar os primeiros passos rumo à Sé. Tropecei num moleque deitado ao lado da loja. Tive a impressão de tê-lo acordado, mas não sei de fato se ele dormia. Pensei que ele fosse me xingar e me preparei para sair dali em disparada. Estranhamente ele permaneceu no lugar. Apenas me olhou, entretanto, e permaneceu recolhido em si mesmo, agarrando os braços finos contra o tórax raquítico. Eu queria entender o que aquele olhar me dizia, mas não pude compreender no momento. Hesitei. Decidi andar. Caminhei por alguns poucos segundos e decidi voltar. Eu tinha umas balas de goma que levaria para Fernandinho e também umas duas moedas que não fariam falta, naquele dia, para a condução. Voltei ao seu encontro. Toquei-lhe o corpo franzino com a mão esquerda e estendi a direita com a guloseima e os trocados. Levou algum tempo até ele erguer as pálpebras e me encarar. Novamente nossos olhares se cruzaram, só que desta vez mais intensamente e por muito mais tempo do que na primeira oportunidade.

- Toma, moleque!

Naquela hora eu notei que seus olhos pegavam fogo. As veias avermelhadas traçavam desenhos desconexos no fundo branco do seus olhos. E, ao mesmo tempo, eles pareciam úmidos não por terem chorado há pouco tempo. Mas de quem iria chorar pela primeira vez naquela noite e talvez por toda a eternidade. O pivete não esboçou reação a não ser me encarar. Insisti mais uma vez que ele pegasse aquele meu presente, porém ele fechou os olhos, contorceu o corpo e acomodou a cabeça num saco plástico que parecia estar guardando um punhado de farrapos. Soltei um palavrão qualquer e fui-me embora. Como podia aquele mal agradecido ter se recusado a pegar as balas e as moedas? Era por isso que o povo não dava mais esmolas para os pedintes e maltrapilhos das ruas - foi o que concluí. Embarquei no que presumi ser o penúltimo trem. No vagão, uns poucos homens cochilando e uns jovens agitados, gargalhando, brincando entre si. Tinha também uma preta gorda que lia a Bíblia. O som interno anunciava as estações. Eu era apaixonada pelas vozes que anunciavam as estações.

Nunca mais vi aquele garoto. O que me fez lembrar dele, hoje, foi seu primeiro olhar enigmático. Eu não sabia o que ele queria dizer. E fiquei muito tempo sem saber qual o significado daquele olhar. Até hoje. Fernandinho lançou-me um olhar tão fulminante como aquele do moleque encolhido nas proximidades da Sé. Meu filho está precisando de mim.

"...Mas há milhões desses seres,
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta, de onde esta gente vem
São jardineiros, guardas-noturnos, casais
São passageiros, bombeiros e babás
Já nem se lembram que tem um Brejo da Cruz
Que eram crianças, e que comiam luz"

 
 

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