BOLA DE CRISTAL
Luís Valise
 

Como fazia todas as manhãs, abriu o jornal na página do horóscopo. Estava lá:

ESCORPIÃO - Aproveite o dia para realizar sonhos antigos. A conjunção de Saturno com o plenilúnio de Marte configura a realização das tuas mais caras aspirações. Siga teus instintos, ponha teus planos em prática. A felicidade está perto.

Gessy leu e releu o que dizia Mme. Zonara. Fechou o jornal, terminou de um gole a xícara de café, e foi para o banho. A mão em concha segurou a dose generosa de xampu. Deixou os cabelos curtinhos envoltos na espuma farta, enquanto ensaboava o corpo pequeno e bem-feito. Em seguida deixou-se ficar sob o jato forte do chuveiro, como se a água pudesse levar o ódio pelo ralo. Envolveu-se na toalha macia, e testou o sorriso através do espelho embaçado. O safado teria o merecido.

Desde que descobrira que o marido tinha uma amante, Gessy esperava pelo momento de vingança. No início, pensou em matar a outra, mas o safado era cuidadoso, e ela nunca soube quem era. Então foi mudando de idéia, e achando que quem devia morrer era mesmo ele, o crápula falso, cínico e aventureiro. Beberrão inveterado, desses que têm o nariz vermelho, levava para o trabalho uma garrafinha de bolso cheia de uísque, que deixava na gaveta e ia tomando ao longo do dia. Gessy procurou nas lojas até encontrar uma garrafinha igual, de aço inox polido recoberto de couro envelhecido. Pegou o objeto no fundo da gaveta das calcinhas, foi até a sala, colocou uísque até a metade. Voltou ao quarto, pegou a nécessaire de maquiagem, tirou um vidro de esmalte, que continha arsênico. Despejou o veneno no uísque, chacoalhou a garrafinha e guardou-a na bolsa, junto com o vidro de esmalte. Sentou-se no sofá e leu o resto do jornal, esperando passar o tempo. Surpreendeu-se com a própria calma. Saiu às dez e meia da manhã.

O trânsito estava lento como de costume, por isso não foi difícil atirar o vidro de esmalte no rio, como se fosse um cigarro. Ao chegar na pequena fábrica de móveis que o marido tinha em sociedade, não viu seu carro na vaga reservada. Estava mesmo com sorte. Entrou sorrindo e cumprimentando os funcionários, como sempre fazia. Passou pela sala do Dorival, sócio do canalha, evangélico sempre disposto a conquista-la para a sua fé, que intercalava o nome de Jesus a cada três frases, e não tirava o paletó e a gravata mesmo nos dias mais quentes. Perguntou por sua mulher, tão carola quanto o marido, e pelo infiel. Soube que o desgraçado saíra para visitar um cliente, e deveria estar de volta após o almoço. Cliente, pois sim! Gessy imaginou o marido num motel com uma sirigaita qualquer. Sorriu para o Dorival, mandou recomendações à esposa, e entrou no covil da hiena. Fechou a porta atrás de si. Andou até sua mesa de trabalho. As gavetas estavam trancadas. Tirou da bolsa uma cópia da chave e abriu a gaveta lateral. A garrafinha estava lá. Gessy fez a troca, e tornou a trancar a gaveta. Pegou o telefone, e convidou uma amiga para almoçarem num shopping, depois irem a um cinema. Voltou à sala do Dorival e perguntou se ele poderia lhe arrumar algum dinheiro. "Claro, irmã, é pra já", disse, enquanto saía para pegar o dinheiro no caixa. Voltou com R$ 500,00 e um recibo para Gessy assinar. Insistiu para que ela levasse um exemplar da revista "Caminhos da Fé". De volta ao carro, Gessy tomou a direção do shopping. Ao passar pela ponte, num gesto natural, jogou a garrafinha original no rio seboso e mal-cheiroso.

Já escurecia quando o telefone tocou, fazendo Gessy levar um susto. A voz do outro lado não deu tempo para que ela fizesse perguntas, apenas ordenou que fosse imediatamente para determinado hospital. No caminho Gessy se concentrava em lembranças tristes, para facilitar o choro na hora certa. Chegando no hospital, foi abraçada pela esposa do Dorival, que chorava copiosamente. Gessy gostaria de chorar assim. Perguntou o que acontecera, e a outra só conseguia dizer "Ele era tão bom, tão bom"... Bom coisa nenhuma, pensou Gessy, o cachorro teve o que merecia! Enfim Gessy conseguiu chorar, e as lágrimas rolavam fartas pelo seu rosto, enquanto também dizia "Era mesmo, ele não merecia morrer tão moço, vou ama-lo para sempre" e a mulher do Dorival afastou-se num repelão, "Vai amar quem, para sempre?", e Gessy, sem parar de chorar, "Meu marido querido, meu maridinho querido". A outra disse "Não!", Gessy olhou-a espantada, a visão turvada pelas lágrimas, "Quem morreu foi o Dorival, o Meu marido!" A princípio atônita, logo Gessy voltou a chorar, agora com mais força. Sentiu que a seguravam por trás, e foi logo reconhecendo o toque, as mãos, o cheiro de álcool. Virou-se, o safado estava lá, nariz e olhos vermelhos, "O Dorival morreu, de repente, estávamos conversando, quando ele se contorceu e caiu no chão, revirando os olhos, acho que foi enfarte". Gessy tinha a expressão perplexa. O filho da puta bebia escondido! Pegava carona na garrafa do safado! E agora? E agora?

No carro, na volta para casa, o patife murmurava, como se falasse sozinho, "E logo hoje, que meu horóscopo estava tão bom..." Foi quando Gessy se deu conta, mas era tarde: - o velhaco também era de Escorpião.

 
 

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