PÁGINA DO DIÁRIO DE UMA MULHER
Márcia Ribeiro
 
 

08 de março de 2005

As abotoaduras não estavam no mesmo lugar e eu não tinha a menor idéia de onde poderia tê-las colocado. Para falar a verdade, eu cansei dessa coisa de ficar vigiando cada objeto da casa, principalmente os de uso pessoal. Tomei conta por anos a fio e ficava esperando cada um deles me perguntar aonde poderia estar a meia que combina com a calça cinza, a gravata preta com um discreto fio prateado - um dia eu mesma dei fim naquela gravata horrorosa - o cinto marrom, o alicate de unha, a chave de fenda de cabo emendado, a cueca azul com uma lista branca do lado esquerdo...

Anos e anos da minha vida me sentindo importante por ser a única sabedora de cada passo dado na casa, de cada "esconderijo" destinado aos objetos e, no entanto, as coisas continuavam fora do lugar. Agora é assim que funciona. Fico ali, recostada na espreguiçadeira, ouvindo música e lendo "O Diário de Uma Dona de Casa Inteligente". Ora, pois. Não eram eles mesmos que viviam dizendo que eu precisava parar com essa mania de ter as coisas organizadinhas, tudo no seu devido lugar?

"Você não dá um tempo pra nada, nem pra gente ter a nossa bagunça organizada...". Eu nunca consegui entender essa história de bagunça organizada, mas é isso que eu tenho ouvido ultimamente. E agora fica o outro lá, no quarto, a blasfemar porque não encontra suas abotoaduras. Aliás, todos eles parecem uns perdidos pela casa e eu acabo rindo, escondida, é claro. Paciência! Tudo tem um preço e eu não estou aqui para ficar ouvindo um discurso que não combina com a prática. Eles que se virem a partir de agora e tenham mais responsabilidade com suas coisas.

Se eu tivesse comprado aquele livro antes, muita coisa teria sido evitada. Pelo menos eu não ficaria tanto tempo perdida, crente que estava abafando nas tantas vezes em que ele me chamava de "fada madrinha", só por eu ter achado uma coisa qualquer e que ele não conseguia encontrar. Bem faz a Clara, que curte a vida, viaja, passeia, é uma mulher culta, independente, está sempre de malas prontas. Quase morri de alegria e inveja quando ela fez um tour pela Europa. Cada coisa que ela conta e ainda tem a desfaçatez de dizer que me inveja. Claro que ela fala isso para me agradar, pois é um doce de criatura.

Acho que nunca vi a Clara reclamar de nada, a não ser de sua vida solitária. Disso ela fala mesmo, das vezes que chega em casa e não tem ninguém esperando por ela. Nem gato ela tem, para não atrapalhar seus planos de vida, seus passeios. Ainda ontem ela falava sobre o fato de já estar chegando numa certa idade e do seu arrependimento em não ter se acertado com alguém para ser seu companheiro. Mas Clara faz tantas exigências que nem sei.

Deve ser mesmo esquisito essa coisa de não ter ninguém para dividir a vida. Nem um filho para ninar, alimentar, educar. Não ter um homem para tomar conta da gente, para reclamar e, depois, agradecer com olhos cheios de admiração por ter uma mulher que cuida dele e dos filhos...

Quer saber de uma coisa? Eu fico aqui, pensando sobre o que pode ser ou não a melhor coisa para a vida de uma mulher e, no entanto, quem, neste mundo repleto de diversidade, pode determinar o que é melhor, quando o que mais se pode querer é tão somente ser mulher e feliz, do jeito particular de cada uma?

Qualquer dia desses, eu volto às páginas desse tal do Diário de Uma Dona de Casa Inteligente, cheio de dicas que, na teoria, são um exemplo da perfeição, como se pudéssemos viver a vida através de um manual de instruções. Quem sabe eu consiga me livrar de uma vez por todas de algumas perguntas que não têm respostas.

Por hoje é só isso, querido diário. E a vida continua, com cada qual com o seu cada qual.

*****

- Mãe? Eu tenho certeza de que deixei a bermuda preta na gaveta. A senhora tirou de lá?

- Você já olhou no cabideiro atrás da porta, meu filho? Ah! Amor? Acabei de me lembrar que suas abotoaduras estão no meu porta-jóias, o perolado, que está na mesinha de cabeceira...

 
 

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